Você é cego?

 Há alguns dias atrás participei, pela primeira vez, de um grupo de apoio a pessoas cegas e com baixa visão. O evento em questão era uma palestra de um ex-engenheiro da NASA que percorrera recentemente a trilha para Machu Picchu, mesmo sendo cego. Ele então compartilharia a sua experiência com a preparação física e o contato com os grupos de suporte necessários. Além disso, se não bastasse os desafios de não enxergar, ele ainda teve um sério problema em um dos joelhos, o que tornou os quatro dias de caminhada até o sítio arqueológico localizado no Peru muito mais intensos.
Apesar da palestra ter sido super interessante e inspiradora, ela não será o foco deste texto, mesmo porque há algumas reportagens disponíveis na mídia local e também um vídeo está sendo produzido sobre esta experiência fantástica, o qual eu divulgarei assim que for lançado. 
Portanto, aqui eu tratarei da minha percepção pessoal daquele dia.

Eu tenho buscado, ultimamente, assumir de forma mais ativa a minha condição em relação à minha deficiência e, de alguma forma, projetar meus planos futuros. Contudo, tenho que reconhecer que isso não é nada fácil. Foi então que eu decidi procurar por esses grupos de apoio e admito que fiquei surpreso com a quantidade de organizações existentes aqui na região onde moro.
Resolvi, então, entrar em contato com este grupo que é organizado por uma clínica de reabilitação cujo objetivo é treinar pessoas para melhor se adaptarem a este mundo moderno a despeito de suas dificuldades visuais. A terapia que eles ofertam visa a capacitação com o uso de aplicativos, lupas, bengalas e outros acessórios que podem facilitar o dia a dia de um indivíduo com baixa (ou nenhuma) visão. - eu ainda não comecei essa terapia, mas assim que o fizer, posso compartilhar aqui também.

Deslocar-me a novos lugares sempre é uma tarefa difícil, por isso saí cedo naquele dia. Chamei o motorista pelo aplicativo (nada de propagandas aqui) e consegui chegar lá com uma certa antecedência. Como sempre, “bati cabeça” nos elevadores (nada de novo), mas consegui chegar na recepção da clínica, onde esperei por alguns minutos, até que me direcionaram para a sala onde seria a palestra. 
Era uma típica sala de reuniões, com uma grande mesa de madeira ao centro e várias cadeiras em volta. Quando entrei pela porta de vidro, notei três mulheres lá sentadas: uma delas a minha direita, na ponta da mesa, a segunda de frente com a porta pela qual eu entrara e a terceira estava a minha esquerda e logo deduzi que esta era a terapeuta que conduziria a palestra, visto que ela era a única das três que enxergava.
“Estou no lugar certo?” - perguntei.
“Está sim!” - respondeu a terapeuta.
“Bom dia, meu nome é Weber, nós conversamos por email.”
“Seja bem-vindo, Weber.”


Quando estava para me sentar, a senhora que estava à direita me perguntou:
“Você é cego?”
Eu poderia agora divagar sobre várias questões relacionadas a essa pergunta, mas eu confesso que na hora fiquei paralisado por longuíssimos segundos, pois eu realmente não estava preparado para aquela indagação. Uma sensação que eu não saberia explicar veio sobre mim e só consegui responder meio que gaguejando.
“Não... eu não sou não.”
Eu achei melhor me sentar em outro lugar, pois sabia que mais pessoas estavam para chegar. Foi então que comecei a conversar mais informalmente com as duas senhoras que já estavam lá (a que me fez a pergunta era totalmente cega e a outra era legalmente cega - posso explicar este conceito em outro texto). Logo depois, outras pessoas foram chegando, umas com cão-guia, outras com algum ajudante e haviam ainda aqueles que só traziam consigo a sua bengala.
Antes de começarmos a palestra, cada um se apresentou e falou um pouco de si. Éramos em torno de 12 pessoas e eu, devido à disposição da mesa, seria o último a me pronunciar. Não tive grandes dificuldades para também falar um pouco da minha doença, das muitas cirurgias e dos anos de batalha, porém fiquei com a sensação de ser um estrangeiro naquela sala, mesmo porque a pergunta “Você é cego?” não me saía da cabeça.

A princípio eu imaginei que o fato de eu ser, disparado, o de melhor visão - não estou acostumado com isso - me desprendeu um pouco do restante do grupo, porém, então eu comecei a fazer um paralelo com meus círculos pessoais do cotidiano (com pessoas que enxergam).
Veja bem, interagir em sociedade tem se tornado cada vez mais complicado para mim, pois eu tendo a pensar que a minha visão será sempre um obstáculo entre eu e o meu interlocutor. Mas, por que será que com algumas pessoas eu me sinto totalmente à vontade? Por que alguns círculos me deixam incomodado e outros me aconchegam com um calor humano tão bom?
Pois bem, eu cheguei àquela reunião pensando que, como num passe de mágica, eu iria estar totalmente em conexão com aquelas pessoas de baixa ou nenhuma visão. Contudo, isso não ocorreu. E da mesma forma, não necessariamente um grupo de pessoas que tem suas visões em perfeita ordem vá me excluir.

O que eu aprendi naquele dia é que a minha afinidade com meus amigos extrapola as barreiras da minha deficiência, ou seja, eu me dou bem com as pessoas com as quais eu me importo, e vice versa. 

Entretanto, agrupar pessoas por suas necessidades tão pouco é um problema, visto que isto pode sim ajudar indivíduos a melhor lidar com  as suas adversidades, porém, de nenhuma forma isso trará uma identificação pessoal e homogênea dentro do grupo. Isso quer dizer que a minha intenção é sim seguir frequentando esses eventos, pois, eu imagino que posso ser beneficiado e, de igual modo, contribuir na experiência das outras pessoas.

Para concluir este texto, quero somente relembrar o quão agradável e precioso é estar com as pessoas que amo, e simplesmente porque as amo, e nada mais.

Weber Amaral

  • Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.

Comentários

  1. Parabéns Vinho por seus relatos. Acredito que este caminho somente você sabe das dificuldades, porém acredite, suas "bengalas" estão a toda parte. Em oração segurando firme na sua mão! Beijos!

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    1. Adoooooro Vinho
      Tenho usufruido muito das bengalas que me foram dadas durante a vida.. e sou grato por isso.
      Beijosss Eliane

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  2. Uau! Curti muito seu insight sobre o grupo de apoio... Hoje em dia se reflete muito a partir da ideia de “identidades”, “minorias” - o que é excelente em termos de justiça social porém raso em termos complexidade humana. Me alegra que você tenha encontrado outros espaços para te ajudar a navegar suas novas e crescentes limitações visuais
    e que isso continue sendo uma das suas características sem te limitar a essa suposta “identidade” como “cego”. Até mesmo porque não se vê apenas com os olhos, e vc meu querido, tem uma forma muito bacana de ver as coisas, aprendo muito com vc!! Obrigada por compartilhar sua experiência!!

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    1. Obrigado Mau
      Compartilhar me faz bem e também me faz aprender. É muito legal ouvir a opinião das pessoas sobre a minha opinião particular.
      Já tenho vontande de reescrever coisas... mudar de opinião é uma boa características, eu acho.

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    2. Pode reescrever que a gente le! Mudar de opiniao eh uma otima caracteristica, principalmente pois mostra humildade. Infelizmente muita gente confunde isso com indecisao, mas sao duas coisas muito diferentes. Ainda to esperando a resposta sobre a cachaca. Abraco, Hermano

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