De onde eu falo, tu falas e ela fala

Em setembro de 1963 foi lançado nos Estados Unidos o primeiro             volume de quadrinhos do que viria a ser um dos maiores clássicos de todos os tempos. X-Men tratava de uma minoria que acendia em uma civilização distópica, e que portanto buscava meios de se encaixar dentro dessa sociedade. Os mutantes  tinham seus grandes poderes e sua simples existência era capaz de modificar todo o planeta, no entanto enfrentavam muitos obstáculos e a aversão dos humanos que seguiam com medo de como esta integração seria feita. Deixando de lado toda a ação que os incontáveis quadrinhos, desenhos e filmes de Hollywood mostraram e popularizaram a marca, a história criada por Stan Lee tem o foco principal em seus dois grandes protagonistas, os super poderosos Charles Xavier e Erik Lehnsherr, ambos líderes de grupos de jovens mutantes que tentam sobreviver dentro do mundo ficcional da história. Professor X e Magneto, como assim são também conhecidos nos quadrinhos, começam então uma relação ambígua, ora como grandes amigos de infância, que demonstram um grandíssimo respeito entre si, ora como inimigos mortais dentro da trama. E a sua rivalidade se devia, em suma, à enorme diferença entre a visão que ambos tinham de como os mutantes deveriam agir diante do medo e do preconceito dos humanos. Magneto defendia o confronto, o embate direto e que mutantes deveriam tomar o controle pela força, mesmo que isso pudesse acarretar, em último caso, a extinção dos humanos. Xavier porém pregava que humanos e mutantes poderiam conviver em harmonia e que por meio de articulação política, diálogo e educação os preconceitos cairiam e todos poderiam encontrar seu lugar na sociedade e viver em paz.

Pela data de lançamento do primeiro volume de X-Men, não é difícil concluir que a história é uma clara alusão aos movimentos de direitos civis nos Estados Unidos, e os protagonistas espelham os grandes líderes negros americanos, Martin Luther King Junior e Malcolm X. Enquanto o pastor presbiteriano pregava, em seu famoso discurso Eu tenho um sonho (I have a dream), que, apesar da opressao de séculos, negros deveriam se integrar em paz na sociedade estadounidense, e que ele sonhava com um país livre de prenconceitos, no qual a cor da pele de uma pessoa jamais seria uma barreira social. Em contrapartida, Malcolm X organizava grupos de luta armada para combater a opressão branca, pois em seu modo de ver, a segregação social só teria fim  com o uso da força.

Obviamente, o contexto histórico e teórico por trás dos movimentos de direitos civis da metade do século passado é muito mais complexo do que eu rapidamente ilustrei no parágrafo anterior, entretanto é inegável que esta ambivalência influenciou e segue ativa em nossos imaginários, tanto que a própria narrativa de X-Men atesta esta afirmativa. Sem contar que vale dizer que ambas visões muitas vezes se misturam e fica um tanto complicado desenhar uma clara diferença entre elas. Dessa forma, o que podemos fazer hoje é nos inspirarmos nestes grandes líderes e tentar trazer seus exemplos para as nossas realidades pessoais.

Conforme escrevi na página de Agradecimentos do meu livro Dislexia Visual, conviver com uma deficiência não é nada fácil. Lidar com um mundo cada vez mais ágil e dinâmico e ter que constantemente me adaptar é, de fato, uma tarefa exaustiva e imensamente frustrante. Além disso, passo diariamente por situaçõesnas quais pessoas não são nem um pouco empáticas e até mesmo vejo meus direitos brutalmente infringidos dentro do meu cotidiano. Por isso confesso que muitas vezes sinto vontade de extravasar e discutir, sem contar que aplaudo imensamente leis que buscam penalizar formas de discriminação de pessoas com deficiência. Mas, a filosofia que trago dentro de mim e que tento propagar em minhas crônicas é a da convivência pacífica e da integração de nós, cegos e cegas, de maneira positiva dentro da nossa sociedade. Defendo que videntes, isto é,pessoas que enxergam,devam ser encorajadas e instruídas para que uma perfeita inclusão de deficientes visuais em suas comunidades seja então possível. Acredito fielmente que somente a educação pode ser a ferramenta definitiva para isso, e que todo o uso de força e até mesmo de palavras ríspidas tem o poder de repelir pessoas e de gerar medo na interação comigo. e mais uma vez afirmo que o medo é a origem de todo o preconceito. Enfim, eu prefiro colocar você, pessoa que enxerga e que me lê neste momento, como um aliado na minha luta e que, para o meu próprio benefício, o mais eficiente é eu sempre tratar você de forma aberta e sincera, pois eu acredito que você seja sim uma boa pessoa e que o que lhe falta para me compreender melhor e ter mais empatia com uma pessoa cega é justamente a informação.

Mas preciso deixar claro que tudo isso que narro aqui trata-se unicamente  da minha visão sobre a minha situação enquanto minoria e a forma que creio que eu e demais deficientes visuais devemos agir dentro da sociedade. Novamente, com base no que leio e estudo, seja em livros, filmes, documemntários, depoimentos anedóticos  ou histórias em quadrinhos, estas são as conclusões que eu tenho hoje. Muitas pessoas podem argumentar que o uso da força foi necessária em muitas situações da história e que portanto, movimentos negros,’por exemplo, tem sim que fazer valerem seus direitos, ainda que por subversão violenta. Mas, o que preciso e quero trazer hoje é que sim eu enalteço os movimentos pacíficos e progressistas, mas de nenhuma forma posso condenar pessoas pretas que agem com rigidez quando se deparam com situações de racismo. E isso se deve a um simples fato: O fato de eu não ser negro!

Eu jamais em minha vida fui  descriminado pela cor da minha pele, tampouco sei o que é ser alvo de batida policial simplesmente por estar caminhando na rua, e nem nunca experimentei o olhar amedrontado de uma pessoa branca pelo simples fato de eu colocar a mão no bolso da minha jaqueta. Não sei o que é ter um parente , amigo próximo ou alguém que se parece comigo ser brutalmente violentado pelo simples fato de ter a pele mais escura. Por fim, não tive que conviver com o peso de saber que meus antepassados foram covardemente trazidos para este continente para servirem de escravos por séculos, e não sei o que é ter que diariamente lidar com a injustiça social que este terrível episódio da história humana causa até os nossos dias atuais.

De igual forma, eu não posso condenar quando pessoas da comunidade LGBTQ se exaltam ou tem um comportamento diferente do que é a minha própria filosofia enquanto minoria quando estãodiante de um caso de homofobia. Afinal eu não sou homossexual, transexual ou nem outra orientação dentro da sigla. Eu nunca fui insultado na rua por simplesmente dar a mão a quem eu amo, eu jamais fui ameaçado de morte por uma “pessoa de bem” simplesmente por ser quem eu sou. Tambémnunca tive que passar por constrangimentos familiares e em último caso ser expulso de casa pelo fato de assumir a minha própria identidade.

Neste momento é importante entendermos que o fato de eu não ser negro ou gay, por exemplo, não me impede de escrever sobre racismo ou homofobia. De forma alguma. Lugar de fala não quer dizer que somente as pessoas daquele grupo podem externar o preconceito que lhes aflige. Lugar de fala diz respeito ao lugar de onde cada um fala. Eu quero sim me expressar sobre estas formas de discriminação, mas é importante ressaltar que eu opino a partir da posição de quem apoia os movimentos, mas que não vive na pele a dor e o peso social de ser quem eu sou.

E não importa quantos livros da Simone de Beauvoir eu leia, não importa que eu ache maravilhosa a cena de mulheres queimando sutiãs como forma de subversão, eu jamais posso opinar que todas as mulheres do mundo deveriam fazer o mesmo, afinal eu não faço a mínima ideia do peso social que esse singelo episódio causa dentro da mente delas. Mas eu preciso ir além aqui neste ponto e necessito entender qual é o meu real lugar de fala quando o assunto é feminismo. Eu entendo hoje que eu sou um homem, e que isso implica que ao falar sobre a situação da mulher na humanidade, eu sou fruto de séculos e séculos de privilégios que a nossa sociedade patriarcal semeou. obviamente,, eu gostaria de ver uma sociedade melhor e que o machismo fosse um assunto do passado, mas eu sigo falando do lado historicamente opressor. Portanto, de nenhuma forma eu posso dizer como uma mulher deve agir, pensar ou  mesmo se expressar. Por tudo isso, eu faço aqui uma auto-referência ao texto Quem inventou o anjo? E reafirmo que não cabe a nenhum homem decidir o destino de uma mulher.

Dessa forma, reforço que devemos todos sim lutar contra as inúmeras formas de preconceitos que assolam a humanidade, mas também precisamos estar atentos ao lugar de fala de cada indivíduo, pois eu entendo que ninguém pode falar melhor das minhas dores do que eu mesmo, uma vez que sou eu que tenho que lidar com elas cotidianamente.

Por fim, deixo uma mensagem de esperança. Assim como Martin Luther King, eu também sonho com uma sociedade justa, na qual nenhuma pessoa é discriminada por sua deficiência, cor da pele, gênero, orientação sexual, crença religiosa, local de origem, altura, peso, idade ou quaisquer outras características tão naturais ao ser humano. Talvez você diga que eu sou um sonhador. Mas, como cantou um pessoal lá de Liverpool: Eu não sou o único!

 

Weber Amaral

 

Notas:

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Comentários

  1. Maravilhoso! Parafraseando a música quero gritar para todo mundo ouvir acho o melhor penso que devemos divulgar para todo mundo ouvir ponto mais uma vez você nos surpreende weber com suas palavras tão sábias valeu por mais esse maravilhoso texto

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    1. Agradeço o comentário anônimo, que eu bem sei de quem é.
      Um grande abraço e obrigado pela força e por me ler.
      Weber

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  2. Olá Weber Amaral!
    Que texto maravilhoso! Me senti representada por suas sábias palavras.
    Eu sendo mulher negra e pessoa com deficiência visual, enfrento diariamente diversas barreiras.
    Mas, é imprescindível unirmos as nossas vozes e deixar bem claro que, este mundão também é meu, é seu, é nosso.

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    Respostas
    1. Olá Gleici Priscila (que me avisou quem era, kkk)
      Fico feliz que tenha se sentido representada pelas minhas palavras. Novamente não tento usurpar o seu lugar de fala, mas ao contrário, tento me colocar no meu devido lugar dentro de toda essa estas discussões.
      Ainda bem que você também concorda que devemos nos unir, afinal o mundo também é nosso. Viu, eu não sou o único. O pessoal de Liverpool estava certo.
      Grande abraço

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