O Deus cego

Repentinamente ele acordou. Estava de pé e não tinha a mínima ideia do local onde despertara , o que ocorrera anteriormente ou o que levara até ali. Uma suave e agradável brisa tocava sua face e ele se sentia muito bem. Não parecia ter nenhum arranhão no seu corpo, inclusive seu joelho direito não mais o incomodava, mesmo após anos e anos de desconforto naquela articulação. Ele então correu a mão pelo seu peito e barriga e percebeu que se vestia com um traje diferente, algo parecido com uma túnica talvez? Notou que sua inseparável bengala estava pendurada em seu pulso e não pensou duas vezes antes de abrí-la e começar a tatear ao seu redor para saber se era seguro se mover da onde estava. Um aroma delicioso de bolo de cenoura recém assado inundou o ar e foi direto às suas narinas. Deliciou-se com aquele cheiro, que foi de repente completado com um teor de café torrado na hora. Ao fundo, parecia ouvir uma música. Sim, era música. Elis Regina lhe recordou então que era o mês de março, e ele sorriu. Apesar desse oceano de  sensações, não sentia fome, frio ou dores, ao contrário, concluiu que jamais se sentira tão disposto na vida, achou que estava pronto para correr uma maratona completa se fosse preciso. Esboçou um sorriso de prazer, logo ao mesmo momento em que uma doce voz invadiu o ambiente.

- Oi, meu filho. Que bom que você chegou!

Ele não conseguiu discernir se era uma voz masculina ou feminina, mas seu peito se encheu de uma paz gigantesca e sem nenhum receio, retornou.

- Oi. Também pareço feliz por estar aqui. Quem é você?

- Primeiro, quero que você venha ao encontro da minha voz. Existem marcações no chão que você poderá seguir. Acredito que com uns cinco passos em minha direção você vai encontrar uma poltrona. Por que não se senta aqui comigo ?

Seguindo a direção da voz e sem nenhum temor no seu coração, ele caminhou os cinco passos que a voz lhe havia orientado. Sua bengala então sentiu algo que de fato parecia ser uma poltrona e ele  sentou-se no móvel mais macio e confortável que já havia tocado. Reclinou-se e o conforto era indescritível. Que poltrona maravilhosa!! Ele pensou. Logo ele começou a ouvir pequenas batidas em uma superfície de madeira, soava a metal perfurando um papel talvez? Pensou então que se assemelhava muito com alguém escrevendo em Braille.

- Pronto, coloquei aqui neste papel alguns dados a seu respeito, , você pode conferir, por favor? Estique seu braço que vou te entregar o que escrevi.

Ele estendeu a mão direita e após alguns segundos uma mão  macia encontrou a sua. Um pequeno pedaço de papel lhe foi dado. Trouxe para perto de si e notou que estava todo escrito em Braille. Conferiu seu nome, data e local de nascimento, filiação, residência, profissão, nome da esposa e dos filhos e data de casamento.

- Está tudo correto! Mas quem é você? E onde eu estou?

A voz, então, deu uma risada bem gostosa e disse:

- Eu sou Deus. E estou muito feliz com a sua chegada aqui. Temos muito muito a conversar, meu filho.

- Você é Deus? Quer dizer então que eu morri? Como isso foi acontecer? Não me lembro de muita coisa!

- Sim, meu filho. Chegou a sua hora na Terra e agora eu te trouxe para perto de mim.

- Mas o que aconteceu? Como está minha esposa? Meus filhos? – ele perguntou com um ar de indignação.

- Mais tarde as suas memórias vão voltar e você se lembrará de tudo, porém posso dizer que você teve uma morte calma e tranquila. Sua família obviamente está triste, afinal eles te amam demais e já estão sentindo a sua falta, mas te asseguro que todos ficarão bem.

Ele teria todos os motivos para se sentir triste, desconsolado, e até mesmo raivoso neste momento, entretanto, seu coração estava tomado por uma paz sem medidas, e as palavras de Deus somente lhe trouxeram mais conforto ainda. Ele devolveu o papel com seus dados e sorriu. Sentiu  que uma pessoa se aproximou e novamente a doce voz de Deus penetrou seus ouvidos?

- Levanta e venha aqui me dar um abraço.

Ele prontamente se ergueu da aconchegante poltrona e se jogou nos braços de Deus. Que abraço maravilhoso! Ele sentiu uma extasiante e agradável fragrância de tangerina vinda do ser divino, ao mesmo tempo que seus firmes cachos lhe tocavam a face. Pensou que poderia passar a eternidade naqueles braços. Deus então lhe soltou o corpo, pegou a sua mão e lhe entregou um objeto parecido com um bastão conectado a algumas cordas.

- Agora gostaria que você conhecesse o meu inseparável amigo, o Ubirajara.

Ele desceu a mão pelo objeto que Deus lhe havia dado e logo encontrou um ser forte e coberto por um formidável pêlo macio. Era um cachorro enorme. E ele não pensou duas vezes e se jogou de joelhos no chão e abraçou Ubirajara com muito carinho. O cão exalava um aroma de hortelã, que lhe lembrou dos momentos mais doces da sua infância, quando sua mãe costumava preparar chá dessa planta para curar-lhe todas as dores do corpo e da alma. Naquele instante, então, ele se sentiu curado de tudo que um dia porventura lhe afligiu na vida. Ubirajara correspondeu o afago com uma lambida em seu rosto. Ele sorriu e continouu a transmitir todo o amor que tinha dentro de si ao seu mais novo amigo.

- Deus, o Ubirajara é maravilhoso!

- Sim, ele é o maior dos meus amigos, um grande companheiro. Este lugar aqui é muito grande, e juntos caminhamos para todos os cantos. Obviamente, minhas mãos que construíram tudo por aqui, mas o Ubirajara é tão sensível para me mostrar as flores dos jardins, conduzir-me pelos campos e à beira-mar, e também para caminhar sobre as pontes e às margens dos rios.

- Eu também posso ter um cão-guia?

- É claro que pode! Arranjaremos isso para você logo logo.

- Que demais! Se for uma fêmea, vou chamá-la de Baleia.

- Agora vamos caminhar até a sua residência, mas pode ficar tranquilo que Ubirajara vai nos guiar. Além do mais temos marcações e sinais sonoros que facilitarão a nossa localização.

Ele não conseguia mais parar de sorrir. Seu peito estava transbordando felicidade e sentiu que jamais queria sair daquele lugar onde estava, nem de modo algum viver longe do seu novo amigo. Ele colocou a mão então no ombro de Deus, e os dois foram caminhando guiados por Ubirajara. Deus lhe contava histórias milenares de como tudo ali havia sido criado, também lhe falou sobre o canto dos pássaros, os ruídos das cachoeiras, as doces fragrâncias das flores e a música ambiente que sempre tocava em alguns pontos específicos do paraíso. Também lhe falou sobre a vizinhança próxima da onde ele viveria a eternidade, quais as melhores refeições que eram servidas e igualmente como ele poderia trabalhar para o bem-estar daquela comunidade que agora ele fazia parte. E ele não parava de sorrir.

- Chegamos à sua casa. Pode entrar pela porta e logo sentirá uma cama onde poderá descansar até o amanhecer. Mandarei um anjo para te dar mais instruções quando despertar, e eu mesmo virei amanhã para saber como você está se sentindo. Agora venha aqui e me dê um abraço de boa noite.

Ele abraçou Deus e novamente sentiu uma explosão de bons sentimentos dentro de si. Abriu a porta da sua nova casa, mas antes de entrar falou alto a Deus, que já se encontrava a alguns metros dali:

- Deus!

- Sim, meu filho.

- Você é tudo aquilo que eu sempre imaginei!

E Deus sorriu.

 

Weber Amaral

 

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Comentários

  1. Que lindo! Senti todas as emoções, sensações e cheiros aqui... Creio que Deus e os céus sejam tão lindos quanto esta narração.

    Maura Bueno

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    Respostas
    1. Oi Maura. Que bom que conseguiu entrar na história. fico demasiado feliz com isso. Um grande beijo e obrigado por me ler.

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  2. Olá Weber, gostei do formato de seu blog, e seus textos são envolventes e claros; parabéns pelos escritos.

    Gerber de Sá

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