Não tem botão!

Desde o começo de 2020 eu comecei a me envolver mais profundamente com alguns grupos de discussão e assistência aos deficientes visuais da região onde moro. O primeiro deles que tive contato foi o HAVIN (Houston Area Visually Impaired Network), o qual, assim como denota o nome, é uma agremiação de pessoas que compartilham de sérias degradações em suas vistas e que se ajudam mutuamente para conseguir lidar com seus desafios de vida. Atra’vés deles eu me informo sobre benefícios dentro da sociedade americana e dicas para conviver com adeficiência.

Outro grupo com o qual tenho tido bastante interação é com o iBug (iPhone Blind Users Group),que foi fundado e épresidido pelo mesmo engenheiro que citei no texto Você é cego? Eles basicamentepossuem sessõessemanais de discussão sobre tecnologias assistivas para celulares, tablets e outros dispositivos eletrônicos. Como já imaginado, o grupo é focado em tecnologias Apple, porém também possui sessões sobre Android, e é nestas que eu tenho mais participado ultimamente.   As reuniões acontecem remotamente e, apesar de ser baseado aqui em Houston, o grupo tem participantes de váriaspartes dosEstados unidos e Canadá. Além disso, as sessões são totalmente abertas, portanto pessoas das mais variadas raças, etnias, gêneros e faixas etárias participam livremente.

No começo de cada reunião todos nós nos apresentamos e falamos rapidamente da onde somos e quais tipos de dispositivos eletrônicos possuímos, passando também uma breve descrição do nosso nível de experiencia com tais tecnologias. Após essa rodada de introduções o moderador passa a palavra para qualquer pessoa que queira fazer uma pergunta, a qual poderá ser também respondida por qualquer participante que deseja respondê-la. O grupo é também composto por pessoas com muita experência com tecnologias assistivas e, inclusive, alguns desenvolvedores de software para dispositivos móveis também estão sempre presentes para ajudar a todos que necessitam de assistência técnica; isto é, o nível do conhecimento é bem alto (considerando que se trata de um grupo de usuários e não de técnicos).

Eu estava então preparado para entrar na minha segunda reunião sobre tecnologias android. Dei um beijo na Marida e a deixei na sala, onde ela ficou assistindo a alguma série (provavelmente Modern Family ou O conto da aia). Ennchi uma garrafa térmica com água fresca, peguei alguns petiscos e fui para oum quarto reservado da casa para participar da ligação, a qual geralmente dura em torno de duas horas.

Sentei-me de frente com o computador e toquei na tela do meu relógio para que ele me falasse as horas. Notei então que  ainda tinha alguns minutos antes do inícioda sessão epor isso peguei o meu celular e li alguns e-mails que estavam na minha caixa de entrada. Ainda tive tempo para responder algumas mensagens de amigos e grupos de conversas e, como não poderia deixar de ser diferente, ainda abri uma ou duas redes sociais e ouvi, despretenciosamente, algumas notícias do Brasil e do mundo.  

Quando faltavam cerca de oito minutos para o início da reunião, eu liguei o computador e aapós alguns segundos o leitor de tela me disse que eu deveria digitar a senha para entrar no sistema Windows. O computador iniciou e eu, usando um comando pelo teclado, abri o navegador e já entrei o endereço do iBug no Google chrome. Após o site carregar eu usei a tecla tab para ir até o link que me levaria direto à ligação. Pressionei a tecla enter e mais algumas outras para finalmente poder falar Öi”para os organizadores que já estavam conectados. Outras pessoas foram então ingressando na ligação e às 19 horas em ponto iniciamos os trabalhos.

Lá pelo meio da ligação um homem pediu a palavra. Ele se apresentou dizendo que era de Massachusetts, um estado do nordeste dos eua e anunciou que tinha uma pergunta. sua voz era trêmula e rouca e, apesar de ele nãodizer a sua idade, eu supus que setratava de umsenhor deaproximadamente 60 ou 65 anos.

“O governo do meu estado acaba de me enviar este novo telefone que eu acho queé o que vocês chamam de Android. eu por toda vida tive aparelhos de modelo flip e agora que o pessoal daagência me ligou dizendo que não será mais suportado eles me enviaram este aqui, mas eu não tenho a mínima ideia do que fazer com ele. Comoque liga? Não tembotão nehum nele!.

 Como citei acima, após uma pergunta, o moderador abre o microfone para qualquer pessoa que se sinta a vontade de responder. Porém após a fala do senhor de voz trêmula, interminárveis segundos de silêncio tomaram a ligação. Um homem, então se apresentou e começou a camamente descrever o processo de inicialização e configuração de um sistema Android ao senhor de Massachusetts. A sua explicação foi muito didática e completa, e parecia realmente muito claro o que deveria ser feito com o novo aparelho.  ele ainda se dispôs a enviar material extra para o senhor e, além disso,  algumas outras pessoas também se ofereceram para ajudar em um outro momento.

O senhor, por fim, agradeceu a todos pelas instruções e e com muita humildade aceitou a ajuda extra que lhe foi oferecida, pois ele certamente ainda se sentia inseguro paraseguir em frente com o seunovo e inexplorado telefone celular.

O moderador, então, retomou apalavra e seguiu com a reunião.

 

Apesar de ser um profssional da área e terdedicado minha carreira por mais de uma década a este fim, eu não posso dizer que sou u apaixonado pela tecnologia por ela própria. sim, eu gosto muito do que faço e quero seguir neste rumo por muitos anos ainda, mas é fácil encontrar desenvolvedores de software que demonstram muito mais encanto pelo processo de programaçào do que eu. Porém eu posso sim dizer que tenho uma paixão muito grande pelo resultado daquilo que faço, isto é, eu amo ver as soluções de software que criei durante a minha vida sendo efetivamente utilizadas para um fim. Adoro ouvir e montar casos de sucesso de como a tecnologia resultante daquilo que faço ajuda um determinado processo. Ou seja, o gratificante da minha profissão é, para mim, aquilo que ele proporciona às pessoas que o contratam. Por tudo isso, eu me encaixei muito bem na área de integração de sistemas industriais desde 2006, quando fiz o meu estágio na Espanha. Logo desde o último ano da faculdade eu tive a oportunidade de sentir o resultado do que faço extensivamente em uso e trazendo benefícios diretos a todos.

Dessa forma eu vejo a ciência e a tecnologia como as maiores criações humanas e agentes imprescindíveis para quaisquer transformações que se tornam necessárias na nossa sociedade atual, porém eu tenho que admitir que nem sempre elas estão disponíveis e acessíveis a todos nós.

Enquanto deficiente visual, eu posso reiterar tal importância transformadora da tecnologia na minha vida, pois é até dificíl de imaginar como o meu processo de inclusão na sociedade seria impossível sem a alta imersão neste mundo e uso extensivo da tecnologia. Entretanto eu sou de uma geração que teve acesso, desde sempre, a tais recursos e, portanto, tudo isso me soa tão familiar quanto a relativa facilidade que descrevi acima para ler e-mails, checar as horas, responder mensagens e entrar em uma teleconferência a despeito da falta de visão.

No entanto nem todos temos essa mesma fluência e familiaridade com a tecnologia e, no caso de deficientes, o abismo só tende a crescer, principalmente porque a própria tecnologia é o que nos abre as portas para este mundo contemporâneo.

 

Weber Amaral 

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