O jogo fácil da vida
Se você lê este blog com regularidade , o nome do Johni já se tornou habitual, afinal jácontei duas histórias das quais ele fez parte durante minhajuventude. Mas hoje quero, infelizmente,trazer uma passagem não muitoagradável da sua vida recente para a nossa reflexão, pois conforme contei na crônica O livro que eu não li, estudei com o Johni desde oprimário até o fim doensino médio. Após isso, ele foi para uma outra instituição e se formou em engenharia daComputação. Apesar de não estudarmos mais juntos, seguimos amigos e até tentamos empreender na área da tecnologia de rádio frequência; porém nossos planos não deram muito certo e eu segui o meu rumo na vida e me mudeipara São Paulo. Johni, por sua vez, investiu na carreira bancária e fez o concurso para a Caixa Econônmica Federal, no qual foi aprovado em 2008.
Tentando fazer uma descrição rápida e superficial do Johni, ele é um
sujeito alto, bem apessoado e que aparentemente náo possui qualquer limitação
física, ou seja, a sua deficiência auditiva só é mais notada após alguns
minutos de conversa face a face; e é
neste contexto que a triste e recente passagem do Johni ocorre.
Um dia, quando conversava com um colega de trabalho, ele comentou que havia
passado no concurso através do sistema de cotas, ou seja, ele usufruiu do seu
direito constitucional e entrou pelas vagas destinadas a pessoas com
deficiência (pcd). O colega, então, olhou para ele e, um tanto quanto espantado
com a notícia trazida pelo Johni, disse com um ar bem sarcástico:
“É mesmo? eu queria ver você zerar a vida no hard!”
Eu não consigo descrever muito bem o que senti
quando o Johni me contou essa história, mas foiuma grande mescla de raiva,
revolta, tristeza, indignação e pena (do colega, não do Johni), pois é
geralmente assim que me sinto quando encaro essas situações injustas de
preconceitos sociais. Portantoeu entendo a perplexidade que você que me lê
agora deve estar sentindo, porém vamos parar um pouco e refletir um instante sobre
este assunto juntos.
Primeiramente, caso você não tenha entendido o que o colega quis dizer ao
Johni, ele fez referência aos antigos jogos de video game, nos quais era
possível selecionar, antes de dar
início, qual o nível de dificuldade que você queria jogar. Por isso quando
alguém chegava na escola se gabando que havia concluído (ou “zerado”) a mais
nova versão do Super Mario Bros, a primeira pergunta que fazíamos era: Ëm qual
nível você jogou? Easy (fácil) ou Hard (difícil)? Ou seja, não havia glória
nenhuma em completar o jogo no modo fácil, a não ser para um treino
preparatório, mas ao contrário, “zerar o game no hard” significava sim uma
grande conquista juvenil. Dessa forma, na visão do colega o Johni só estava ali
naquele posto junto a ele porque havia escolhido “jogar no modo easy”.
Em 2015 o Brasil vivia um clima muito tenso e movimentos reacionários
questionavam os poucos avanços de direitos humanos que haviam sido implantados
no país, ao mesmo passo que minoriaslutavam por igualdade e reconhecimento
dentro da sociedade, grupos extremistas resistiam e criavam narrativas
paraenfraquecer tais grupos. em dezembro desse mesmo ano, então, umoutdoor foi
levantado emCuritiba e trazia a seguinte frase: Fim aos privilégios dos
deficientes!”.. Os autores, porém, não se manifestaram e a incógnita de quem
havia patrocinado tal ato ficou no ar por um tempo. Obviamente ( e felizmente),
muitos grupos da cidade manifestaram repúdio ao ato e muita revolta foi
demonstrada nas redes sociais naquele dia.
Portanto assim qcomo o outdoor dizia, o colega do Johni também acreditava
que ele gozava de privilégios e que estaria acima da lei, ou seja, que o fato
de haverem vagas em concursos públicos
destinadas exclusivamente para pessoas com deficiência se tratava de um desvio
moral da sociedade e qe, ainda mais cruel, isso representava uma fraqueza – ou
até mesmo uma vergonha – para a pessoa que usufruisse daquele direito. Isto é,
em outras palavras, escolher se candidatar a vagas para pessoas com deficiência
representa jogar no easy”.
voltando, pois, ao outdoor de Curitiba, um dia após ele ter sido colocado,
os autores se revelaram e foi então que a cidade ficou sabendo que aquilo se
tratava de uma campanha de marketing da secretaria especial dos direitos da pessoa
com deficiência da prefeitura municipal. Ela fazia alusão ao dia internacional
da pessoa com deficiência e, para completar a campanha, o outdoor foi
substituído no dia seguinte com os dizeres: ësperamos que todos aqueles que se
revoltaram que jamais se calem frente a uma injustiça a um deficiente”. Ou
seja, eu acredito sim que, se a intenção era chamar a atenção para o assunto, a
campanha foi bemsucedida.
Mas indo além da questão social dos direitos da pessoa com deficiência e de
o quanto sofremos sim discriminação dentro de nossas comunidades, também há que
se pensar em como educamos e alertamos a todos o quãoimprescindíveis são as
políticas de inclusão para deficientes. Isto é, se quisermos viver em uma
sociedade justa e próspera, temos que sim nos educarmos e desenvolvermos a
empatia coletiva, ou seja, pensarmos um nos outros e na comunidade como um
todo. Por isso, é extremamente importante dar voz àqueles que clamam por
igualdade de oportunidades ao mesmo passo que necessitam lidar com uma desvantagem
física tão nítida.
Por exemplo, eu imagino que você se orgulha do tanto que estuda, treina e
se prepara para o mercado de trabalho, penso que você já tenha gastado tempo,
dinheiro e muitos outros recursos para obter o seudiploma, certificado ou
quaisqueroutras formas de capacitação.
Mas enquanto você pratica judô ou lê aquele livro técnico, uma pessoa cega está
tentando, com muita frustação e sobrecarga emocional, aprender a diferença
entre as letras M e U no alfabeto Braille (por éxperiência própria, digo que
isso é muito difícil). Ao mesmo tempo, uma pessoa com baixa audição tenta
aprender e desenvolver técnicas de leitura labial para conviver em sociedade e
um deficiente físico busca rotas por onde passar sem que tenha que lidar com
altos perigos urbanos.
Portanto não há como exigir que haja justiça na chegada desta corrida da
vida se não partimos todos de pontos iniciais semelhantes.
Há cerca de dez anos mais ou menos, enquanto eu me recuperava de uma das
inúmeras cirurgias dos olhos repousando na casa dos meus pais, Johni me fez uma
visita e me contou que ele também sentira um incômodo em uma das suas vistas. a
princípio cheguei a pensar que ele estava fazendo algo que muitos fazem perante
mim, ou seja, contar seus pequenos desvios de miopia para criar um laço, visto
que eu estava ali deitado com um dos olhos operado e coberto com um tampão; no
entanto, à medida que ele foi me descrevendo o problema fui notando que não se
tratava de algotão simples assim. Ele me
contou que apesarda vista embassada ter melhorado após alguns dias,ele e a sua
família sepreocuparam mais ainda com outros sinais que surgiam em seucorpo,
taiscomo um ponto anestesiado em um dos seus ombros.
foi então que, após muitos e muitos exames e inúmeros especialistas, ele foi diagnosticado
com esclerose múltipla.
Isso, obviamente, chocou toda a sua família e também nós, os amigos. Como
poderia isso ser verdade? Por que o Johni teria que passar por mais esse
perrengue na vida? Não bastava só a baixa audição? Que mundo injusto é esse? Ou
seja, tudo isso era muito difícil de acreditar. Mas, Entretanto, neste caso em
específico, o que eu penso e reflito não tem a menor relevância, pois somente o
que se passa na cabeça do próprio Johni é o que realmente importa. E eu me
recordo exatamente do que ele me disse naquele dia lá na casa dos meus pais,
enquanto o cheiro do esparadrapo que segurava o tampão no meuolho aindaexalava
bem forte em mim.
“O diagnóstico está aí e é definitivo, agora eu preciso aprendera viver com
mais essa e seguir em frente.”
Temos falado tanto em seguir em frente por aqui, e que a vida precisa
continuar a despeito das adversidades que encontramos, que tudo isso até pode
começar a soar um tanto quanto banal, mas observar exemplos como o do Johni se
torna ainda mais importante, principalmente para entendermos que nada nessa
vida é garantido e que, de uma hora para outra, toda a situação pode ficar bem
diferente de tudo que conhecemos. Ou seja, a solução do Johni de encarar a
realidade como ela é e tentar seguir em frente pode parecer bem simples, mas
ela está longe (muito longe) de ser fácil.
Em contrapartida, o Johni bem entende que ser homem, hétero, loiro dos
olhos claros e ter sobrenome alemão em
meio a uma sociedade machista, homofóbica, racista e xenofóbica representa sim
um privilégio seu. além disso, temos falado o quão excludente é não possuir uma
base firme de apoio e nisso o Johni também se diferencia, pois ele igualmente
nasceu dentro de uma família abençoada e vive um lindo casamento com a Helô.
No entanto reafirmo que o Johni, e somente o Johni, sabe das suas dores,
frustações e desafios cotidianos. somente ele entende o quão penoso é
participar do mercado de trabalho e da sociedade tendo que praticar leitura
labial ao tempo todo – e leembre-se que a pandemia já dura mais de um ano e as
pessoas seguem usando máscaras, o que para ele é terrível.
Portanto jamais julgue a vida de um deficiente, ou de qualquer pessoa, sem
entender a fundo o que acontece no seu dia a dia, pois certamente há muitas
coisas que vão além do que você conhece e que dizem respeito àquele indivíduo
somente. Ou seja, o lugar de fala não pertence a você.
Weber Amaral
👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
ResponderExcluirMãos plaudindo pra você também. obrigado Marianna . Abraços
ExcluirQue texto lindo e verdadeiro Binho.
ResponderExcluirVocês são realmente verdadeiros amigos.
Você mora em nosso ❤ desde sempre.
Parabéns pelo texto .
Feliz dia do amigo!
Nosso amigo Binho
Obrigado desconhecida (ou desconhecido), que eu imagino bem quem seja
ExcluirAbraços e vocês também moram no meu coração vermelho
Muito bem dito, Binho! Obrigado por compartilhar a história do Johnny e as suas tb, exemplos de superação! Abraços
ResponderExcluirValeu mano, agradeço por ler e vamos tomar uma aí pô
ExcluirAbraços mano
Parabéns Binho! Excelente texto! 👏🏾👏🏾👏🏾
ResponderExcluirValeu Fabricio.
ExcluirObrigado pela grande participação por aqui
Abraços
Ótima reflexão. 👏👏.
ResponderExcluirObrigado por ler e comentar. Abraços
Excluir