O livro que eu não li
Quando eu tinha 16 anos de idade, tive que passar por uma
cirurgia muito delicada de extração do cristalino em ambos os olhos. Por se
tratar de um procedimento muito invasivo e arriscado, o período de recuperação
seria de algumas semanas. Felizmente, tudo correu conforme o planejado, mas,
como eu estava no meio do segundo ano do ensino médio, acabei perdendo muitas
aulas e algumas datas de entrega de trabalhos e até de provas.
Assim que
voltei a frequentar a escola, tive que então ignorar os olhos cansados e correr
para “pegar a matéria” com os colegas, fazer os trabalhos atrasados e as provas
que os professores tinham me flexibilizado as datas. Porém, uma das provas (da
turma inteira) cairia justo naquela mesma semana que retornei: a de literatura,
cujo livro-tema era Senhora, de José de Alencar.
Como não
havia a mínima condição de eu ler um livro de centenas de páginas naquela minha
situação, eu não li - lembrando que não haviam e-books e, muito menos,
audiobooks naquela época e até mesmo o acesso a internet ainda era muito
restrito. Além do mais, eu estava com a cabeça muito cheia: era o
pós-operatório, a prova de geometria espacial, o trabalho de físico-quimíca e
muito mais; ou seja, acho que me faltou um pouco de “tato” para tentar também
negociar a remarcação desta prova.
Pois bem,
lá estava eu, junto com amigos, enfurnado na sala de estudos, a qual ficava ao
lado da biblioteca. Já era o começo da noite (quem fez CEFET sabe a
literalidade do termo “Sala de estudos 24 horas”) e estávamos todos focados na
prova de Matemática, que ocorreria na manhã seguinte, mesma data do exame sobre
Senhora. Então, eu comecei a lamentar para todos ali o fato de eu não ter lido
o livro e que, portanto, eu estava muito desesperançoso.
Foi quando
o Johni olhou pra mim e falou:
“No caminho
de casa eu te conto o livro inteiro, fica tranquilo”
Ouvindo
aquilo, eu respirei fundo, agradeci e voltei a focar na Matemática.
O caminho
de volta para casa era de mais ou menos 30 minutos - Johni e eu morávamos no
mesmo bairro. Foi então que eu ouvi atentamente ele me contar tudo sobre a
história de desencontros, vingança e amor entre Aurélia e Fernando Seixas.
Embora o
Johni tenha sido melhor que qualquer podcast de revisão literária dos dias
atuais, eu cheguei na manhã seguinte muito inseguro para aquela prova. A sala
toda sabia a minha situação e que eu tampouco havia lido o livro.
Foi quando a professora entrou na
sala e a minha espinha gelou. Ela colocou suas coisas sobre a mesa e disse:
“Bom dia
classe, organizem-se em duplas para a prova!”
A sala foi
ao delírio e eu, por milésimos de segundos, também.
Mas, foi
então que pensamentos relâmpagos vieram à minha cabeça: “Ninguém vai querer me
escolher como dupla, afinal eu não li o livro”. Também pensei que se eu pedisse
para alguém se juntar comigo, a pessoa iria logicamente aceitar, mas iria sair
muito prejudicada, porque eu não sabia nada sobre aquele romance.
Foi então
que meus pensamentos foram drasticamente interrompidos com o Johni arrastando a
mesa para junto da minha e dizendo:
“Vamos lá
Binho, bora fazer esta prova!”
O Johni é
meu amigo desde a infância, jogávamos bola na rua e na quadra juntos e
estudamos na mesma turma por vários e vários anos. Apesar de ser um menino
muito quieto, ele era aquele cara que todo mundo gostava. Além disso, ele era
bem devoto à religião católica dos seus pais e, mesmo eu sendo um adolescente
evangélico fervoroso (como já disse em outro texto), a nossa amizade era bem
verdadeira. Lembro-me de passarmos horas em sua casa tomando coca-cola e
tentando decorar as músicas do Renato Russo. Enfim, ele era um cara muito
parceiro e nossa amizade bem única. Mas, havia ainda um outro fator que tornava
a nossa amizade um pouco mais especial: Johni tinha um sério problema de
audição.
Sim, eu sei
que acabei de escrever um texto dizendo que deficiência não necessariamente
gera afinidade, mas aqui vale pela anedota, pois sobre isso temos muitas
histórias engraçadas, e até constrangedoras, pra contar, mas que vou deixar
para um outro momento.
Eu sei que
este gesto na prova de literatura passou despercebido para quase todos naquele
dia, inclusive para o próprio Johni, que seguramente mal se lembra deste
ocorrido. E, pra ser bem sincero, isso é o que mais me alegra nesta história
toda. A naturalidade dos fatos.
O Johni foi
o primeiro ali a ativamente puxar sua mesa para o lado da minha, mas sei que
muitos ali naquela turma 322 fariam o mesmo, já que ela era toda formada por
“Johnis”. Uma prova disso foi que muitos dos meus amigos passaram horas e horas
comigo para me ajudarem a recuperar a matéria: foi o Gustavo me explicando como
encontrar o volume da esfera, o Paulino me mostrando a fórmula do mol, o
Fabrício me ensinando a calcular os resistores, enfim, os exemplos iriam longe
aqui.
Após o
ensino médio, a faculdade, o intercâmbio, vários trabalhos, mudança de cidade,
de estado e até de país, sou muito grato por ter encontrado várias pessoas
assim na minha vida, ou seja, aqueles que naturalmente me estendem a mão, e
para as quais eu espero também ter estendido a minha. E reenforço que o belo
disso tudo é a maneira totalmente natural e imperceptível como tudo
ocorre.
Hoje eu sei que a verdadeira amizade
é silenciosa, não se vangloria das coisas que faz e age sem esperar receber de
volta. A única motivação é simplesmente querer o bem de quem se ama.
Ah, e sobre
a prova. Gabaritamos. Afinal, como diria Manfredini Jr.: “Johni era fera
demais...”.
Weber Amaral
- Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.
Sensacional o texto Weber!
ResponderExcluirFiquei admirado como você lembra de detalhes de como tudo ocorreu...
Me senti grato por fazer parte de sua história..
Obrigado pela sua amizade e saiba que estarei sempre aqui para o que der e vier..
Qdo vir pro Brasil vamos marcar aquele churrasco da turma em casa, onde ficávamos horas e horas rindo relembrando os velhos tempos.. Mas agora terá que ser em Londrina, hehehehe... Venham da msm forma.. Serão bem vindos :-)
Grande Fabricio. Eu ia escrever mais uma histórias sobre aquela turma 322, inclusive citando nosso saudoso Marquito, mas achei inapropriado.. hehe
ResponderExcluirEu que me sinto grato por tudo que tivemos a oportunidade de viver, e também por ter encontrado pessoas fabulosos, como vc.
Um grande abraço e mês que vem to aí - prepara o s espetos aí (ui)
Nao tenho nem o que falar. Mas o Johni e você são fodas demais.
ResponderExcluirValeu Edison, um grande abraço.
ExcluirQue texto bonito! É sempre bom aquecer o coração com histórias cheias de bons exemplos, superação e carinho.
ResponderExcluirObrigado Janaia. Fico muito feliz pelo aquecimento do coração. :-)
ExcluirMarido, sabe o que esse texto é???? Ele é muito bonito!!! Te amo!
ResponderExcluirObrigado Marida. Será que um dia eu viro um Del Toro? hehe
ExcluirEu que amo muitao.
Binho the storyteller. Muito bom esse texto! Pelo que me lembro, bem melhor de ler do que o "Senhora" do Jose de Alencar (que eu acho que nunca terminei).
ResponderExcluirTadinho. Vou falar pro Johni te contar o livro. Hehe
ExcluirValeu... fico feliz que tenha gostado.
Tô lendo esse texto num 20 de julho, dia do amigo. Que delícia 💗
ResponderExcluirsomos amigos, amigos amigos pra valer!
Excluirhehehe.. Obrigado Mari. Abração