As chaves da independência

Marida chegou um pouco mais cedo do trabalho naquela sexta-feira, e mesmo assim estava muito ansiosa para terminarmos de arrumar as malas, afinal na manhã seguinte voaríamospara Honolulu, no Havaí. Como eu havia ficado em casa o dia inteiro, minhas roupas já estavam todas dentro da nossa bagagem e então começamos juntos a completar com tudo aquilo que precisaríamos durante os nossos sete dias de viagem. Para tanto, havíamos previamente feito uma lista, a qual fomos checando item a item para que não esquecessemos de nada.

                  Quando a lista já estava quase completa, a Marida deu um suspiro de cansaço bem profundo e falou que precisava tomar um banho e que também tinha fome, pois estava desde cedo sem comer nada substancial. Eu disse que tudo bem, mas logo lembrei-lhe de algo que ainda tínhamos que fazer.

                  “Precisamos ir lá levar as chaves para o gandhi e a Vanessa.” – disse eu.

                  “Pois é, tinha me esquecido disso. Será que realmente precisamos deixar as chaves com eles?” – retrucou a Marida.

                  “Olha, eu acho bom, afinal vamos ficar uma semana fora e caso aconteça algum imprevisto, eles podem vir aqui resolver para nós.”- respondi e logo emendei uma outra questão – “Além disso, eu olhei na minha carteira e não tenho nenhum dinheiro, você não acha bom sacarmos alguns trocados para levarmos?”

                  “Eu também não tenho quase nada de dinheiro comigo e seria sim muito importante ter algumas notas conosco. Ah, mas eu estou tão cansada e aindatenho que comer e tomar banho. Não quero sair mais de casa não!”

                  “Mas o que a gente faz então?”- perguntei.

                  “Ai, não sei. Você não pode ir lá levar a chave para eles?”

                  “Olha, é sempre tão difícil. Mas posso sim!” – respondi com receio.

                  “Então, leva a chave lá para eles e deixa para lá o dinheiro, qualquer coisa a gente tenta sacar no aeroporto.”

                  Eu fiquei um pouco contrariado, pois como nosso vôo era bem cedinho, eu tinha a clareza que a correria iria nos impedir de cumprir a tarefa acima. Mas mesmo assim enviei uma mensagem para oGandhi avisando que eu iria lálevar as chaves. Coloquei umtênis, botei o endereçono GPS, peguei a Severina e segui o meu caminho a pé.

                  Gandhi e Vanessa são um casal de amigos que moramalgumas quadras de casa. A caminhada é bem tranquila e não dura mais que dez minutos. Porém, como você já deve estar imaginando, para mim isso não é tão simples assim. Por isso fiquei um pouco apreensivo ao sair de casa naquele dia. O sol estava bem forte e assim que coloquei meus pés para fora de casa , já me dei conta que errara ao não trazer comigo um boné, mas mesmo assim, segui em frente. Como já contei, a Severina é a minha bengala não dobrável e feita de fibra de vidro, o que faz ela bem leve e mais adequada para longas jornadas. Fui então tateando o caminho e tentando manter a linha reta e dentro da calçada, a qual tem geralmente uma cor clara, o que me permite identificar o contraste com a grama –truques que vou aprendendo com o tempo.

Como sempre, deparei-me com carros mal estacionados e bloqueando a passagem. Isso é terrível para mim ou para qualquer deficiente que tenta se locomover por aí, mas, ao invés de me ater ao quão desrespeitoso era aquilo, eu tentei simplesmente desviar, porém não pude evitar um tropeço na frente da casa de um vizinho.

Seguindo o meu caminho, encontrei uma calçada em obra, a qual estava muito mal sinalizada e que só consegui notar graças à extensão da Severina. Fiz, então, uma arrojada manobra e circundei pela grama. Depois de algum tempo, o GPS me avisouqueeu havia chegado ao meu destino. Liguei então para o Gandhi (já que eu não quis tocar a campainha para não correr o risco de acordar o pequeno Nicolas), ele apareceu na porta e eu lhe entreguei as chaves e tivemos uma rápida conversa sobre a nossa viagem que estava para começar.

Antes de me despedir, eu resolvi perguntar algo que tinha me passado pela cabeça durante o percurso para a sua casa:

“gandhi, por um acaso você tem uns trocados aí com você?”

Devo ter algumas notas na minha carteira. Por quê? Você está precisando?”- perguntou Gandhi.

“sim, eu estava precisando sacar, mas não conseguimos ir ao banco. você me emprestaria?”

“Claro, mas não tenho muito não.”

                  “O que você tiver está bom. Só preciso para alguma emergência mesmo.”

O gandhi entrou e e, após alguns segundos, retornou com duas notas pequenas. eu agradeci imensamente e nos despedimos.

No caminho de volta para casa, eu andava com a Severina quando escutei alguém gritando:

“cuidado! Cuidado!”

Eu imediatamente parei e comecei a tatear o chão um pouco mais para frente de onde eu estava e senti que novamente me encontrava na calçada em obras. A voz continou:

“Tem uma obra nesta calçada, você não vai conseguir passar por aí. Tente ir um pouco para a esquerda por sobre a grama.”

Eu fiz como a voz me orientou (que, para ser sincero, era exatamente o que eu havia feito no percurso de ida para a casa do Gandhi e daVanessa). A voz então me parabenizou por corretamente contornar o obstáculo e euagradeci pelas dicasvocais.

virei uma esquina e vim me aproximando da minha casa quando uma outra voz me disse:

“Está tudo limpo na sua frente, pode vir, pode vir!”

“Muito obrigado!”- disse eu.

“Você está procurando por minas?”- questionou o senhor.

“O quê?”- eu perguntei não entendendo direito.

“Sim, parece que você está em um campo minado com aqueles aparelhos que detectam minas.

Eu dei uma risada, pois realmente achei a piada do senhor muito boa.

“Estou sim. Mas acho que você deveria então se afastar, porque se eu achar uma mina, nós dois vamos explodir aqui!”

Ele também riu e desejou-me uma boa tarde e terminou dizendo:

“você é alguém muitovalioso. siga em frente!”

Ao chegar em casa, a Marida já havia tomado banho e estava comendo alguns petiscos. Eu dei-lhe um beijo e sentei-me ao seu lado e abri o aplicativo bancário no meu celular para transferir o dinheiro para a conta do Gandhi. Ao terminar eu contei a minha pequena jornada para ela e fiquei com um sentimento de dever cumprido.

Estava agora tudo pronto para a nossa viagem para o Havaí.

 

Ser independente é, com toda a certeza, um dos maiores objetivos de todo ser humano adulto. todos nós queremos nos sentir capazes de resolver nossas próprias lutas e problemas do dia a dia. Entretanto, para uma pessoa com deficiência, tudo isso tem uma conotação muito diferente e atingir um estado de total suficiência é algo inimaginável. Por isso sempre tento reforçar a necessidade de auto-conhecimento que eu e outros que também tem uma séria restrição física precisamos ter.

O exemplo acima pode aparentar muito tolo e supérfluo para você, mas eu lhe garanto que nào existe nada disso ali. Tenho contado muitos exemplos de mínimas atividades do cotidiano que tem se tornado cada dia menos factíveis, e que é muito façil às vezes me pegar imerso em um mar de pessimismo e sentimento de incapacidade. Portanto, por mais singelo que possa parecer tudo o que eu contei neste texto, comemorar e celebrar a conclusão de pequenas tarefas é sim muito gratificante e, por que não dizer, desafiador.

Outro detalhe importante é também entender a  necessidade de ter à sua volta pessoas que sempre te estimulam a dar um passo a mais e jamais seacomodar. Como exemplos disso, o Gandhi e a Vanessa temsido o meu destino de treino desde que comecei minhas aulas de orientação e  mobilidade, nas quais eu basicamente aprendo a utilizar   a bengala para me locomover por aí. quando chegava no fim da tarde eu enviava uma mensagem para eles e somente dizia: Ëstou saindo de casa, chego em 15 a 20 minutos.”. No primeiro dia eles ficaram lá na frente da casa brincando com o Nicolas e me esperando. Passei então alguns minutos com eles e disse que tinha que voltar. Eles simplesmente me deram tchau e pediram que eu ligasse caso houvesse algum problema. Ou seja, demonstraram preocupação, mas em nenhum momento deixaram de acreditar que eu pudesse concluir ambos percursos.

Da mesma forma, a Marida tem sido a minha maior encorajadora para que eu continuamente busque maneiras de seguir em frente e fazer aquilo que deve ser feito. De fato, tê-la comigo é o maior presente que eu poderia ganhar na vida.

Portudo isso, não interessa se você tem um empurrãozinho de estímulode alguém muito próximo, ou empresta uns trocados de um amigo, ou conta com um desconhecido na rua para melhor te orientar, ou ainda simplesmente tem uma conversa agradável e fiada com um vizinho. O importante é saber canalizar dentro de si todo esse zêlo, carinho e boas atitudes para seguir em frente em busca da sua própria independência. Mesmo sabendo que “independência”pode ter um significado todo particular para você.

Siga em frente!

 

Weber amaral

Comentários

  1. 👏👏👏👏👏PARABÉNS BINHO, DEUS SEMPRE ABENÇOE VC E A CAROL, BJS

    ResponderExcluir
  2. Viva!!! Esse é o meu menino corajoso! Abraço da Marilu

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Corajoso nada. eu tava com muito medo de achar a mina que o meu vizinho falou. hehehe . Beijos e mais uma vez obrigado

      Excluir
  3. ������ muita admiração por vc pela sua trajetória, coragem, altruísmo, auto-confiança e determinação. ❤️❤️❤️������������

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olha só, que honra tê-la por aqui. Muito obrigado.. de coração. Procuro sempre botar em prática o que aprendi com meus professores e professoras .. heheh Beijos e tudo de bom

      Excluir
  4. Comemorar pequenas conquistas é fundamental pra todos!! Obrigada por nos lembrar disso 👏👏

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo com você Karol. Cada passo é importante e acredito que deva mesmo ser celebrado. Muito obrigado. Abraços.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O capacitismo na religião

Uma barata chamada Kafka

O pecado do conservadorismo

Limitações em família

O dia que eu saí do armário