Quem inventou o anjo?

Mal o sinal do meio dia tocou e eu já comecei a recolher caderno, livro e estojo para colocar em minha mochila. Levantei-me da carteira, falei tchau para alguns amigos de classe e também me despedi da professora de matemática, que havia dado uma excelente aula sobre triângulos equiláteros. Naquele dia eu havia decidido não ir para casa almoçar, como era de costume, afinal meu curso de espanhol começaria logo no início da tarde e eu ainda teria que ler um texto recomendado por la maestra. Desci, então, a rampa central da escola e fui em direção à cantina, certo que meus cinco reais me possibilitariam comprar um X-salada e, talvez, um refrigerante. No meio do caminho uma voz me parou:

               “Oi, você vai almoçar por aqui hoje?”

“Oi Letícia, vou sim, você também vai?”

 “Sim, vamos lá então, que eu estou morrendo de fome!”

Corremos para a cantina, fizemos o nosso pedido e nos sentamos em uma mesa pequena ali no pátio da escola. A Letícia, como de costume, começou a me contar sobre seus estudos e como o primeiro ano do ensino médio havia sido puxado, mas, inteligente que era, não deixava por menos e, a despeito de pequenos percalços em Física, ela seguia tirando as melhores notas da turma. Com muita empolgação ela falava das aulas de português e literatura, dos treinos de vôlei e tambem de outras atividades da sua vida. 

“E vocë?  Agora que está terminando o segundo ano, já sabe o que vai fazer no vestibular?”- perguntou-me ela.

Eulhe contei então dos meus planos de seguir nas áreas exatas, pois amavaFísica e Matemática. Quem sabe poderia estudarengenharia, computação ou algo do tipo. Como eu me sentia muito a vontade em falar com ela, também lhe contei de um sonho que eu já cultivava desde a adolescência, estudar em outro país. Não que eu almejava propriamente morar fora, mas que gostaria muito de entrar em uma universidade estrangeira, fazer algumas aulas em outro idioma e viver umtempo perdido no mundo.

“Ah, eu também gostaria muito de viajar, conhecer o mundo. Estudar por aí, ter contato com novas culturas. Também quero ser uma grande profissional no futuro, não sei bem ao certo em qual área, mas quero ser boa no que faço.”- ela parou por alguns segundos, olhou para os lados , cortou um pouco da empolgação e continou de forma mais branda: “Mas, você sabe mesmo o que eu gostaria de ser? Dona de casa!”.

Eu parei de comer meu sandúiche, cerrei os olhos em sua direção e meio sem entender, perguntei:

“Como assim?.

“Pois é, eu fico pensando e sei lá. Acho que quero mesmo é me casar com um cara legal, que tenha um ótimo trabalho e que eu possa cuidar da casa, ter meus filhos, ajeitar suas lancheiras para a escola, ser uma boa mãe e deixar tudo em ordem para a minha família.”

 

A Inglaterra do século XIX vivia o auge das consequências da revolução industrial e gozava de uma prosperidade também fruto da expansão do império. Apesar desses grandes avanços, o dito período vitoriano também se caracterizou pela consolidação de preceitos morais da sociedade britânica, que cultivava costumes bem conservadores. Em 1854 o escritor coventry-patmore publicou umpoema entitulado O anjo do lar. Tratava-se de uma obra em homenagem à sua prórpia esposa, uma mulher modelo para um casamento perfeito a partir da perspectiva masculina. Ela era devota, recatada , submissa, passiva e sobretudo pura, ou seja, um verdadeiro  anjo cuidador do lar, que se auto sacrificava em favor da manutenção da ordem da família e que representava o pilar central daquela casa. Isso possibilitava ao homem ser um profissional de sucesso, enquanto todas as preocupações internas familiares eram bem geridas pela mulher.

Décadas após o fim da era vitoriana, a já consagrada Virginia Woolf escreveu um ensaio em formato de palestra, no qual eladissertava sobre seus primeiros dias de carreira e como fora sua jornada até chegar a ser uma das grandes escritoras da história da literatura mundial. Neste texto, o qual foi posteriormente publicado no livro Profissões para mulheres e outros artigos feministas, ela justamente descreve como era ter que trabalhar em suas composições literárias ao mesmo tempo que tinha as obrigações sociais de uma mulher do início do século XX. Por isso, o maior obstáculo para ela foi justamente uma mulher, um fantasma que lhe perseguia a todo momento, dizendo que Virginia era uma pessoa meiga e frágil e que portanto deveria ser amável, simpática e jamais poderia demonstrar ter opinião própria. Este fantasma era o anjo do lar,  e lhe assombrou em cada momento de suas escritas. Quando ela precisava sentar-se e se dedicar a um livro, o anjo cobria seus olhos com suas asas e não lhe permitia compor. Ela então descreve que para se ver livre, não teve outra alternativa a não ser efetivamente matar o anjo do lar – killing the angel in the house.

 

Aos dezesseis anos eu não possuía dentro de mim os conceitos acima, mas mesmo assim, fiquei muito desnorteado a ouvir a Letícia me confidenciando os seus planos futuros. Como assim ela queria ser o tal anjo do lar? Justo ela que era inteligente, eloquente, competente em tudo que fazia. Eu era certo que ela poderia ser uma advogada, jornalista, publicitária ou ter uma bela carreira pública em qualquer área de comunicação ou política. Eu quis muito saber mais das suas intenções naquele dia, mas o sinal da uma hora soou e tive que ir para a aula de espanhol. O tempo passou e Letícia se mudou para outro estado. Acabei perdendo o contato com ela e honestamente não sei ao certo o que aconteceu em sua vida. A última notícia que tive é que ela havia entrado no curso de comunicação social em Minas Gerais. No entanto, suas palavras não me saiam da cabeça e eu sempre imaginei que ela havia se rendido ao fantasma do anjo do lar desde a adolescência, ou mesmo que ela havia entregado os pontos antes mesmo de começar a luta da vida.

Mas depois de muita reflexão interna e amadurecimento intelectual, eu entendi que pelo menos o caso da Letícia não se tratava efetivamente de uma rendição aos moldes vitorianos, mas sim de uma escolha pessoal. Afinal ela era inteligente, letrada, dona de si e talvez quem sabe até perto demais do coração selvagem. Tinha a liberdade para iniciar sua vida adulta no começo do século XXI como melhor lhe convinha, bem diferente de mulheres de tempos passados. Obviamente, esta liberdade ainda não representa a totalidade da nossa sociedade atual, e o anjo do lar segue assombrando as mulheres nos dias de hoje. Mas esta será uma outra discussão, pois quando eu (homem)afirmo que os dias modernos são de menos opressão sobre as mulheres, eventualmente corro o risco de escorregar em um grande equívoco, ao qual não desejo me submeter neste texto. Infelizmente casos de misoginia, violência doméstica e feminicídio inundam os nossos noticiários. Isto é, vivemos sim em uma sociedade que ainda necessita resolver suas questões de igualdade entre os gêneros. Portanto, excluindo a batalha constante de conscientização sobre a importância do equilíbrio de oportunidades para todos e todas, o maior ponto de reflexão que tenho hoje é qual é o meu papel enquanto homem na decisão do destino de uma mulher. E eu mesmo me respondo : Nenhum!

Então que Letícia seja dona de casa, que Carol seja bióloga, Marlene professora, Mônica médica, Leila engenheira, Natália cientista, Jean Louise advogada, Cláudia costureira e Sandra policial. Que Marta joguefutebol, que Michele componha sinfonias, Tassila pinte quadros modernos, Virginia se dedique aos oito filhos, Ester escreva belos romances fora de sua redoma, Priscila cante, Macabéia datilografe e que Joana corra livremente pela praia. E que,além das suas profissões, que sejam felizes ou tristes, sérias ou divertidas, decididas ou librianas, extrovertidas ou tímidas, dedicadas ou relaxadas, glamurosas ou requintadas. Que sejam o que quiserem, pois não cabe a nenhum homem definir que o destino de uma mulher  seja a cozinha ou o quarto, a rua ou a calçada, o escritório ou a construção, aconfeitaria ou o congresso nacional. Diante disso eu me calo e faço ecoar as palavras de ClariceLispector em A hora da estrela: “O destino de uma mulher é ser mulher!”.   

 

Weber Amaral


Comentários

  1. Perfeito, é uma honra em ter você com meu primo!

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    1. Vixi, e agora heim? qual dos meus 35 primos ou primas comentou isso aqui heim?
      Beijão e obrigado por ler..

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  2. Que lindo! Cada mulher é única e já tem o seu brilho próprio! Que possamos ser felizes , muito felizes!👏👏👏♥️♥️♥️♥️

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    1. Que todas e todos sejam o que quiserem ser!.
      Beijos e obrigado.

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  3. Parabéns! Pelo belo texto, tão atual e real.
    Raquel (Rj)

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    1. Obrigado pelo comentário Raquel
      Fico muito feliz em receber e agradeço as gentis palavras. As lutas das mulheres de séculos atrás refletem até os dias de hoje, sem nenhuma dúvida.
      Um grande abraço.

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  4. Que lindo, Binho! Que bela visão, tão empática com o mundo. Obrigada por ser luz❤️

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