Preto ou branco?
No começo do ano, durante as minhas
férias, enviei uma mensagem para um amigo de longa data dizendo que eu estava
ali na cidade por alguns dias e pergunteise podíamos nos encontrar. Ele
aparentou muita alegria ao conversar comigo, mas explicou que infelizmente
estava em outro estado também aproveitando um período de folga. Lamentei, disse
que nosso encontro ficaria para uma próxima oportunidade e já fui lhe desejando
votos de um bom repouso onde quer que ele estivesse. Ao invés de retribuir a
mensagem e fechar a conversação, ele me enviou um longo texto justificando o
fato de não ter entrado em contato comigo nos últimos tempos. Obviamente ele
sabia da minha perda de visão e imaginava sim que eu estivesse enfrentando a
situação da melhor forma possível, porém ele mesmo não sabia como lidar com
este fato da vida do seu amigo. Ele usou palavras bem duras sobre si próprio e
até mesmo questiono o seu valor no papel de amigo de alguém que passa por algo
tão traumático em sua vida. Eu fiquei um pouco em choque com a mensagem, mas
tentei responder de forma compreensível afirmando que cada umsabe o peso que
grandes transformações de pessoas queridas representa em suas existëncias e
lheassegurei que não existia nenhum ferimento em nossa longa relação de
amizade. Fizemos, então, planos para o nosso próximo encontro, o qual espero
que aconteça em breve.
De fato, os
últimos anos tëm sido os mais difíceis da minha vida e com toda a certeza eu
quero (e preciso) contar com a empatia e amizade de todas as pessoas que são
importantes para mim neste momento táo duro que atravesso. Mas, de todo o
coração, a minha mensagem para meu amigo não continha nenhum teor rancoroso,
pois eu verdadeiramente entendo que cada um lida com grandes tragédias de forma
totalmente diferente. Para tanto basta analisarmos o modo com o qual as pessoas
se comportam perante a perda de um ente querido. Alguns choram compulsivamente,
outros se retraem e há ainda aqueles que inesperadamente se convertem em uma
“pedra”emocional, isto é, não demonstram nem sequer um pingo de balanço irracional
diante da situação.
Mas, para
além do carinho e sentimento de empatia que tenho experimentado de pessoas
próximas e até mesmo de desconhecidos, algo que tem realmente me surpreendido é
o quão desinformada a sociedade é em relação à vida de um deficiente visual.
Anedoticamente, posso contar um ocorrido há alguns dias, no trabalho, quando um
colega ficou extremamente surpreso quando eu lhe contei que eu usava o teclado
para digitar meus textos, documentos e correios eletrônicos. Ele, ao contrário,
tinha total certeza que eu me utilizava de algum software de digitalização de
voz, isto é, que eu ditava para meu computador escrever – Obs: isso de fato
existe, mas seria mais indicado apessoas com limitações motoras.
Tantos
outros exemplos de ignoräncia social coletiva me vëm à mente neste momento,
porém mais do que ficar apontando tais equívocos eu prefiro enaltecer aqueles e
aquelas que de fato reconhecem a sua falta de conhecimento e tentam
desconstruir seus conceitos sobre pessoas com deficiência. E vocë, que abre o
link deste blog e pela leitura tenta entender melhor o meu mundo, é a prova
viva de que sim existem muitos entre nós que sóprecisam da instrução correta
para serem mais empáticos com o diferente. Afinal, não tem como vocë saber as
dificuldades de se aprender Braille se eu não te contar, ou ainda não tem como
vocë adivinhar como eu faço para saber quais notas de dinheiro eu tenho em
minha carteira ou menos ainda como eu consigo trabalhar se a minha experiência
não lhe for compartilhada. Portanto, eu entendo que muito do que acontece no
meu dia a dia é totalmente obscuro para você, e que isso jamais lhe será
acessível sem a explicação apropriada. Por isso eu insisto em escrever e contar
minhas aventuras e desventuras neste blog, nas minhas redes sociais, ou também
e em outros meios por aí (aguardem novidades nos próximos dias!).
Entretanto,
um ponto ainda mais importante do que aprender sobre a vida de um deficiente
visual é também entender que este universo não é, de forma alguma, uniforme. A
cegueira não atinge indivíduos de forma igual e pode ter sido introduzida em
momentos tão distintos na vida de uma pessoa que irá moldar sua personalidade
de forma extremamente peculiar. E este é um conceito que eu mesmo só tenho
aprendido agora na minha vida, justamente pelo fato de estar cada dia mais
integrado à comunidade de pessoas cegas no Brasil e nos Estados Unidos. Talvez
o primeiro caso que mais me chocou foi de uma mulher que tentou descrever sua
visão em uma reunião de um grupo que eu participava. Ela contou, de forma bem impressionante,
que consegue plenamente enxergar uma moeda caindo do outro lado do cômodo da
sua casa, mas que quando ela se dirige em direção do objeto para pegá-lo, ela pode
tropeçar em um elefante deitado no chão da sala. De igual modo, na mesma
reuniao, um homem contou que quando tinha 34 anos de idade, saiu de casa para
ir ao mercado comprar comida para seu filho recém-nascido. Ele dirigia
tranquilamente pelas ruas da cidade quando um carro desgovernado se chocou com
o seu. Ele acordou 30 minutos depois sem nenhum arranhão no corpo, porém
totalmente cego De ambos os olhos. E se vocë agora parar e pensar por cinco
segundos pode ter uma noção de como a cegueira afeta essas duas pessoas e a mim
de formas totalmente distintas, isto é, há um significado do conceito de visão
brutalmente particular entre nós três.
O fato é
que devido às múltiplas graduações de cegueira que atingem pessoas ao redor do
mundo, não podemos jamais generalizar a deficiëncia visual e somente a pessoa
será capaz de compartilhar seus desafios e peculiaridades. E eu tenho tido
muito interesse ultimamente em conhecer melhor o universo de pessoas que, ao
contrário de mim, jamais enxergaram. Como eles e elas “vêem”a vida é sim um
mistério para mim e escutar suas histórias tem sido muitoenriquecedor. Para
tais pessoas, conceitos que são bem comuns em nosso dia a dia não fazem o menor
sentido, ou seja, tente pensar como você
explicaria a diferença entre azul, amarelo, preto e branco para uma pessoa que
jamais enxergou na vida. Logicamente, vocë poderia usar termos da Física e teorizar
sobre como os espectros de luz atingem e refletem sobre um determinado objeto, porém
o próprio conceito de “luz” está difuso no contexto dessas pessoas. Por mais
que eu seja cego, se vocë me falar a palavra “cadeira”, por exemplo, na minha
cabeça será projetada uma imagem de uma cadeira comum. Mas como isso
funcionaria para os demais?
Eu tenho
tido um contato mais próximo com uma pessoa totalmente cega de nascença e há
alguns dias, no meio de uma de nossas conversas, ele falou uma frase que fezmeu
cérebro quase que entrar em parafusos. Disse-me ele: “Às vezes vem um negócio
na minha mente que eu acho que se trata de uma imagem, mas eu jamais poderei
ter certeza disso!”.
Em seu
livro O ensaio sobre a cegueira, sobre o qual já escrevi por aqui,
o escritor portuguës e Nobel de literatura José Saramago conta a história de
uma epidemia que atinge a totalidade da população e faz com que todos fiquem
cegos. Entretanto, esta deficiëncia tem umapeculiaridade, pois a vista de todas
pessoas é perdida e tomada por uma espessa camada branca. Por isso, os
personagens gastamboa parte do romance conjecturando sobre qual seria o
significado da branquitude daquela doença global, já que todos ali sabiam que “um
cego comum vë tudo preto”. Ora, graças também à minha maior integração com pessoas
com diferentes níveis de deficiëncia visual, esta semana eu, que sou totalmente
cego de um dos olhos, aprendi um novo conceito dentro desse universo imenso de
conhecimento. Aprendi que uma pessoa totalmente cega não vë tudo preto, ela
simplesmente não vê!
Portanto,
eu mais uma vez gostaria de lhe agradecer por ler e se interessar em aprender
um pouco mais sobre o meu mundo e também por querer abrir os olhos (sem medo do
uso da metáfora) para universos que podem parecer tão distintos do seu. Eu
continuo crendo que no fim das contas, por mais que algo aqui e ali sugira o
contrário, sempre teremos mais em comum do que imaginamos. E este ponto em
comum será sempre a nossa ignorância em relação a muitos assuntos. Aprendamos
juntos!
Weber Amaral
Show meu querido.
ResponderExcluirOi meu querido. Obrigado por ler e se interessar por este contúedo. Um grande abraço.
ExcluirSempre aprendo com este querido escritor! Somos deficientes de informações e seus relatos fazem com que possamos vivenciar suas dificuldades e superação! Parabéns sempre grande mestre!
ResponderExcluirEu sempre acreditei que todas as pessoas tëm algo a nos ensinar. E fico feliz em ajudar um pouco com isso também. Um beijão e obrigado mais uma vez por tudo.
ExcluirParabénbs Binho!! Que bom, vc sabe a diferença entre azul, amarelo, preto e branco.....
ResponderExcluirque o Senhor ilumine vc sempre.
Olá Júlia. Não sei ao certo se mereço parabéns por saber tal diferença, mas obrigado de qualquer forma. Um grande abraço e obrigado por ler e comentar.
ExcluirObrigada por compartilhar suas experiências de vida e nos trazer ainda mais conhecimento.
ResponderExcluirConfesso que a frase mencionada por seu colega (nao saber de fato o que é uma imagem), também me fez entrar em parafuso, mesmo sabendo que já estudei por 3 anos com uma pessoa que ficou cega de ambos os olhos aos 9 meses de vida.
A cada dia me interesso mais por seu blog, primo.
Beijo grande!
Pois é. Acredito que ainda temos muito mais ignorância do que conhecimento dentro de nós e sabedoria mesmo é reconhecer isso e humildemente compartilhar o pouco que sabemos e tentar aprender ao máximo. Obrigado pelo apoio prima. Um beijão
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