Um contraensaio sobre a cegueira

            Como de costume, acordei cedo no último sábado e já fui para a cozinha para preparar o nosso café da manhã. Cozinhei alguns ovos, tostei um par de pães de forma, separei uma fruta e o queijo branco e coloquei tudo na mesa para aguardar a Marida se levantar. Tomamos o nosso café conversando e planejando como seria o nosso fim de semana, afinal eu estava com muita expectativa  para que este dia chegasse, pois 15 de Outubro é comemorado o WhiteCane Awareness Day (ou Dia da Conscientização da Bengala para Cegos) aqui nos Estados Unidos. Esta data é muito celebrada por deficientes visuais e ativistas pela inclusão das pessoas cegas em todo o país. A ideia é festejar a conquista de direitos civis e espalhar a cultura do uso da bengala como ferrramenta não somente de identificação e segurança, mas também de independência.

A Marida dirigia lentamente nas proximidades de onde seria o evento e, quando dobramos a esquina, consegui sentir uma grande alegria vindo dela ao dizer?

“Ñossa, quanta gente de bengala. Que demais!”

Ela me descreveu que mais ou menos umas trinta pessoas estavam ali na frente do local do evento e aparentemente se deslocando para o interior do ambiente. Entramos no estacionamento designado para visitantes, paramos o carro e juntos fomos caminhando até o mesmo ponto onde estavam todos. Quando chegamos, aquelas pessoas já haviam entrado e também nós nos direcionamos para o balcão de registro do evento, que estava logo ali na entrada.

Aqui vale parar um pouco e dizer que, como já contei acima, Marida me acompanhou neste evento, ou seja, ela me direcionou a todos os lugares e também me narrou tudo aquilo que ela via com os olhos. Entretanto, a grande maioria dos participantes não tinham um acompanhante vidente (este é o termo para uma pessoa que enxerga).

Marida me disse que havia uma pequena fila e duas pessoas ainda fariam o registro do evento antes de nós. Ficamos parados então na fila, esperando a nossa vez. De repente senti um objeto tocando levemente meu tornozelo e uma voz masculina me disse:

“”Desculpe-me!”

“Sem problemas!” - respondi.

“Você está aguardando para se registrar?”- ele me perguntou

Eu disse que sim e seguimos aguardando. Consegui ouvir uma mulher no balcão dando as instruções para o agora registrado participante de onde ele deveria ir. Ele agradeceu e foi se retirando à minha direita. A voz da mulher, porém, me soou familiar quando ela disse:

“Próximo para se registrar, por favor.”

O casal que estava a nossa frente deu alguns passos em direção ao balcão, gentilmente cumprimentou a mulher com um “Bom dia”e já foram dizendo seus nomes para que ela buscasse no registro. Quando ela se apresentou foi que eu tive certeza que já havia ouvido sua voz, ela era uma das organizadoras do evento e a secretária geral da National Federation of the Blind aqui em Houston. No mesmo momento um senhor também se apresentou ao casal e eu igualmente o reconheci, pois ele dirige um dos  grupos que igualmente participo com alguma frequência.

“Marida, eu acho que conheço essas pessoas que estão fazendo o registro dos participantes. Você sabe me dizer se todos que estão atrás do balcão são cegos?” – perguntei baixinho, mesmo sabendo que ninguém nos entenderia conversando em português.

“São sim Marido. Impressionante não é?” – ela me respondeu no mesmo tom.

Quando finalizamos o nosso registro e fomos caminhando para o salão onde estavam acontecendo as exposições de produtos e serviços relacionados ao evento, a Marida me contou que, apesar de haver alguns voluntários videntes com coletes que os identificavam como tal, aparentemente eles só ficavam direcionando verbalmente as pessoas a irem para o lugar correto. Visitamos alguns painéis de empresas e organizações expositoras e aprendemos algumas coisas bem interessantes, mas que não serão o foco deste texto. Quando o relógio bateu dez horas da manhã, vozes começaram a convocar a todos os participantes a se direcionarem ao auditório ao lado para que a cerimônia pudesse começar. Nós caminhamos com calma e segui tomando algumas leves “bengaladas”no pé, mas, com alguma paciência, todos conseguiram passar pela porta e entrar no auditório. Marida sussurrou e me disse que ver tudo aquilo era um tanto quanto desafiador, pois pessoas se perdiam e tentavam entrar em portas que não eram as corretas, mas que felizmente nenhum acidente aconteceu e todos acharam o seu caminho e estavam corretamente sentadospara o início da cerimônia.

Como de costume em qualquer evento estadounidense, o hino nacional foi cantado a capela por uma mulher com uma belíssima voz e também o The Pledge of Allegiance foi entoado por todos os que estavam no auditório. Alémdisso, um pastor batista fez a oração inicial da cerimônia, o que é igualmente comum por aqui. O evento seguiu com muita música, divulgação das organizações envollvidas, testemunhos de pessoascontando histórias de suas bengalas e também uma maravilhosa leitura sobre a história das conquistas de direitos civis para deficientes visuais trazida por um jovem estudante da cidade. Porfim, o prefeito Sylvester Turner trouxe belas palavras de encorajamento a todos nós que estávamos ali e expressou todo o seu orgulho em ter participado de todos os White Cane Awareness Day durante os seus sete anos de mandato – obviamente, por conta da pandemia, o evento não aconteceu em 20 e 21.

A organizadora doevento, a mesma que estava na recepção e que também havia aberto a cerimônia, fazia os últimos agradecimentos e começava a explicar como seria a distribuição das caixas com lanches par ao almoço, quando a Marida me falou baixinho.

“Com exceção do prefeito e do pastor, todas as pessoas que subiram ao palco eram cegas!”

Tenho escrito neste blog há quase três anos e inclusive publiquei, em maio de 2022, o livro Dislexia Visual Crônicas. Nestes meios, apesar de assuntos diversos como amizade, família, religião, esporte e comportamento social fazerem parte do meu repertório, o principal assunto acaba sendo de fato a questão do deficiente visual dentro da nossa sociedade. É inegável que procuro a todo momento expressar a dura realidade que rodeia o meu dia a dia, mas também esforço-me para quebrar os preconceitos e abrir um debate sobre as questões que tangem este tema. Por conta disso, sempre busco trazer palavras de afirmação da condiçao e habilidade de cegos e reinforçar a necessidade de acabar com o capacitismo e todas as demais formas de discriminação social. Além disso tudo, tenho lido muito (muito mesmo) sobre o assunto e portanto me muno de muita literatura para basear aquilo que penso. Por último, tenho conversado com muitos outros deficientes e escutado histórias sempre maravilhosas de como meus pares igualmente lidam com suas limitações em seus cotidianos.

Mesmo com tudo isso em consideração, devo confessar que estar presente no White Cane Awareness Day deste ano foi surpreendente em muitos aspectos. Ao ouvir as palavras da Marida me contando que toda a organização e condução do evento foi feita por pessoas cegas me encheu ocoração de orgulho e um sentimento de “sim, eu posso!” tomoou conta de mim. Obviamente, o evento não foi perfeito e alguns pontos podem sim ser melhorados, entretanto o sentimento de pertencer a uma comunidade que não esconde sua identidade e luta pelos seus direitos e reconhecimento dentro de uma sociedade trouxe muita esperança para os meus dias.

 

Weber Amaral

 

Notas:

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Confira também o texto O menino estrábico 

Comentários

  1. Que massa, Binho! Realmente pra mim foi algo novo saber da existência do white cane daí e mais ainda que a maioria da organização e dos panelistas eram pessoas cegas. Amei aprender também o termo acompanhante vidente! Imaginei logo a Marida com um turbante e uma bolinha de cristal :p
    Brincadeiras à parte, obrigada por trazer mais e mais informação sobre esse assunto pra gente! Beijão!

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    1. Oi Lorena. Sim o termo "vidente" soa um tanto quando estranho pra gente neh? Mas acostuma. Em ingles o termo "sighted" parece mais tranquilo. hehe.
      Eu que agradeco voce parar um pouquinho na vida corrida e ler o que eu trago aqui. Isso certamente faz toda a diferenca pra nós - ou seja, pessoas que se dispõem a entender um pouco melhor do nosso mundo.
      Um grande beijo e agradecido sempre pelo apoio.

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  2. Muito interessante aprender sobre essa experiência, tio Binho! Achei incrível o fato de que as pessoas mais interessadas não apenas participaram do evento mas também organizaram e apresentaram. Isso mostra que inclusão não precisa ficar apenas em campanha corporativa.
    P.S.: Achei o título do post genial!!

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    1. Exato Mano.
      Inclusão é um termo muito bonito e que no papel é frio. Entretanto, para nós na prática é a abertura de um mundo todo novo e realmente a oportunidade de viver dentro da sociedade.
      Que bom que gostou do título do livro. Tem que ter alguma bagagem pra entender, e isso sei que tens de sobra.
      Um grande abraço.

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  3. Muito interessante. Não sabia que existia esta data nos Estados Unidos. adorei seu texto e logo quero adquirir seu livro. Sempre disseram que o deficiente visual não tenho muita independência neste país. Fico feliz de saber que não é bem assim. Gratidão

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    1. Olá e muito obrigado pelo comentário.
      Eu igualmente tinha uma percepção da falta de independência de deficientes tanto aqui quanto em outros lugares do mundo. Mas é incrível o que pessoas podem fazer juntas e buscando um objetivo comum.
      Um grande abraço.

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