A minha adorável heroína

Abri a porta do passageiro do nosso Escort 1987, empurrei o assento para frente e sentei-me no banco de trás. Meu pai trouxe sua mala com chuteira, meião e outros apetrechos futebolísticos, abriu o porta mala, jogou tudo ali dentro e, após fechar o compartimento, gritou bem alto:

“Vamos Marlene!”

Minha mãe veio de dentro de casa vestindo seu típico guarda-pó branco de professora e trazendo em suas mãos alguns livros de ciências e um estojo com giz. Ela desceu no colégio onde daria aulas noturnas a uma turma de adultos, e eu acompanhei meu pai para o seu habitual futebol de terça-feira. Enquanto ele estava no campo com seus colegas de pelada, eu fui para a quadra que ficava do lado do campo onde os outros adolescentes também jogavam futebol. Cumprimentei alguns deles, mas não me aventurei a entrar no jogo, pois eu ainda estava tentando “ir devagar”após mais uma cirurgia que tinha acontecido umas trës semanas antes. Um dos meninos então disse:

“Vamos jogar linha então!”

Não vi grandes problemas, uma vez que este tipo de brincadeira não requeria muito suor. Nós nos divertimos bastante e quando acabou o futebol do meu pai, corremos para o estacionamento para buscar minha mãe no colégio. Ao chegar em casa por volta das dez da noite, não nos estranhou que todas as luzes estavam apagadas, uma vez que sabíamos que meus irmãos não estariam ali. Meu pai parou o carro de frente ao portão e minha mãe correu para abri-lo. Nossa casa ficava em um nível inferior ao da rua e meu pai, então, desceu a rampa para parar o seu Escort na nossa garagem.

“Ué, cadê a Milena, que não veio nos receber heim?-“. Perguntei

“Deve estar lá no fundo!”. Respondeu meu pai.

A Milena era uma linda e dócil cachorra. Ela tinha o porte grande e forte típico do Fila Brasileiro e um pêlo caramelo brilhante de um Weimaraner. Ela tinha um pouco mais de um ano e nos tinha sido dada por um amigo do meu pai, logo após termos perdido um outro cão maravilhoso da minha infância, o Pluto.

              Enquanto meu pai estacionava o carro, pegava seus itens do porta-malas e eu fechava o portão, minha mãe foipara os fundos da casa para entrar pela porta da cozinha. Estava muito escuro por lá, e ao se aproximar, a Milena começou insanamente a latir em sua direção. Ela estava atrás do portãozinho que deixávamos para separaro quintal dos fundos.

Nossa casa era simples e o quintal dos fundos ficava em um nível inferior. Uma escada com dois grandes degraus então separava os dois ambientes. tínhamos uma calçada de mais ou menos trës metros de largura e um quintal que se extendia por mais dez metros. No canto direito, rente ao muro, meu pai havia construído uma edícula bem rudimentar, onde ele deixava algumas ferramentas e toda a sorte de quinquilharias que se pode imaginar que uma família de cinco pessoas era capaz de acumular. O resto do quintal era de pura terra vermelha norte-paranaense. Assim como o Zezinho, ali no centro eu tinha meu próprio pé de laranja lima, além de uma árvore de mexerica e um limoeiro. Mais pro fundo uma frondosa mangueira fazia uma enorme sombra aos menores pés de fruta-do-conde e mamão. Também ali no cantinho esquerdo minha mãe cultivava pequenas hotaliças. Mas o meu preferido mesmo erao gigantesco pé de ameixa amarela do vizinho que, de tão grande, tinha os cachos sempre carregados caindo para o nosso lado do muro, o qual ,desde criança, eu subia e ficava desfrutando aquela maravilhosa e doce fruta.

Para separar o quintal da parte frontal da casa, tínhamos um pequeno portão de ferro que simplesmente encostávamos na parede quando queríamos deixar a Milena só lá nos fundos, mas que naquela ocasião estava quase que todo aberto justamente porque ela poderia tomar conta da casa como um todo, enquanto estávamos fora. Entretanto, ela não parava de latir por de trás do portão semi-aberto e em direção da minha mãe. Como estava muito escuro minha mãe começou a conversar com a Milena para tentar entender porque ela não cessava os insanos latidos. E foi então se aproximando do pequeno portão. Milena latia ainda mais alto e desesperada enquanto minhamãe buscava acalmá-la. O portão era bem baixinho, mesmo porque ele ficava em umnível abaixo. Minha mãe extendeu a mão por cima da grade para fazer um carinho na Milena, mas ela deu um berro e avançou com tudo para cima da pequena estrutura de ferro. Logo ela começou a berrar quando uma fina cobra, que estava enrolada no portão, grudou seus dentes em seu focinho. Minha mãeteve um gigantesco susto, deu um passo para trás e também começou a gritar. Meu pai e eu corrermos para o fundo ao ouvir todo aquele alarde. Alcancei a luz e podemos ver a cobra se soltando do rosto da Milena e caindo na escada. Meu pai logo pegou uma vassoura e bateu com muita força para matar o réptil, enquanto a  Milena chorava e gritava de dor acuada perto do muro. Minhamãe, bióloga que era, chegou perto da cobra e nos disse:

              “Esta cobra é venenosa!”

Milena sentou-se encostada ao muro enquanto soltava um gemido de dor que partia o nosso coração. De repente, ela não aguentou mais ficar em pé e deitou-se tremendo. Minha mãe correu ao seu socorro e lhe abraçou.

“Precisamos levá-la para tomar soro urgente!”

Meu pai correu para dentro de casa e, ao abrir a lista telefônica, tentou entrar em contato com os dois únicos veterinários de cães que havia em Cornélio Procópio. Obviamente, devido ao horário, ele não conseguiu falar com ninguém, mas logo tentou ligar para colegas que por ventura saberiam como falar com algum deles. Por fim, ele se lembrou de um amigo que tinha um irmão que atendia animais de grande porte em fazendas da região. Ele felizmente atendeu o telefone e em alguns minutos confirmou que poderíamos ir em sua clínica com a Milena. Meu pai rapidamente pegou ela no colo e colocou no banco de trás do Escort. Sentei-me ao seu lado e fiquei fazendo carinhos em sua cabeça. Seu focinho estava muito muito inchado e ela respirava com dificuldades. Em menos de dez minutos chegamos à clínica e o veterinário já estava lá nos esperando. Felizmente sua clínica era a sua própria casa. Meu pai deitou a Milena por sobre a mesa do centro da sala e logo o médico de animais já aplicou o soro em sua pata dianteira. Ela respirava cada vez mais fraco e suas pálpebras foram se fechando bem devagar. Meus olhos se encheram de lágrimas e logo comecei a achar que ela não aguentaria.

“Ela vai dormir um pouco agora, mas vai ficar bem. Precisamos deixar o soro correr por uns trinta minutos, e depois é só levar ela para casa e deixá-la descansar.”. Assegurou-nos o veterinário.

Respiramos aliviados e lhe agradecemos demais.

Depois de uns cinco minutos que ficamos ali fazendo carinho na Milena, meu pai foi conversar com o veterinário, que havia ido para uma sala do lado. Ouvi então eles conversando e falando que o serviço tinha ficado 25 reais. Vi meu pai fazendo um cheque, apertando a mão do veterinário e voltando para ficar do nosso lado.

Estávamos nos primeiros anos do Plano Real, e eu sabia que 25 reais não eram uma pequena quantia de dinheiro e que sim poderia fazer falta para a nossa família. Afinal, este valor representava cerca de um terço do salário mínimo naquela época.

“Ficou 25 reais?”. Perguntou minha mãe.

“Sim!”. Respondeu meu pai.

Permanecemos alguns minutos em silêncio, olhando para Milena deitada em paz ali na nossa frente.

“Pobrezinha, estava latindo com tanta força e eu nem vi a cobra. Se ela me pica, pelo menos o soro na Santa Casa para gente é de graça!”. Falou minha mãe em tom de brincadeira, mas logo ficou séria novamente e continuou: “Ela fez de tudo para me avisar da cobra, mas quando eu fui acalmá-la, ela avançou com tudo no portão. Agora ela está aí tomando soro no meu lugar.”.

Fiquei olhando para a Milena respirando calmamente e de olhos fechados, e logo imaginei minha mãe deitada ali em seu lugar tomando o soro. Obviamente, ela estaria em uma cama de hospital e não em uma mesa veterinária, mas mesmo assim fiquei pensando no seu grande heroísmo e fidelidade.

Fizemos um esforço conjunto para colocar a Milena novamente no banco traseiro do Escort e fomos para casa. Meu irmão, que até entãonão sabia de nada do que havia acontecido e já estava muito preocupado com onde estávamos, quase chorou ao ouvir o que contamos para ele. Colocamos a Milena em um cantinho bem aconchegante dentro de casa e ficamos checando como ela estava durante toda a noite. Pela manhã,despertamos felizes ao ver que ela estava de pé e totalmente recuperada.

“Está com fomeMilena?. Perguntou minha mãe.

Ela balançou o curto rabo e demonstrou uma felicidade gigantesca ao receber um pedaço de pão e um pouco de leite. Durante o dia ainda lhe foram servidos outros banquetes e lhe enchemos de carinho e abraços. Alguns vizinhos que ficaram sabendo do que havia acontecido vieram conversar conosco e também dar um afago na nossa heroína.

Alguns meses se passaram  e, no dia 12 de novembro , ela completou 2 anos de vida. Umtempo depois ela teve sua segunda cria. Ao todo teve nove filhotes e um ficou conosco. Milena viveu mais dez anos, quando uma doença a levou de nós em definitivo. Entretanto, seu heroísmo, fidelidade, companheirismo , doçura e amor sempre estarão presentes em nossas memórias.

 

Weber Amaral

 

Notas :

·        O título desta crônica faz referência ao livro Adorável heroína, do americano Michael Hingson. Uma obra autobiográfica na qual o autor conta como escapou do 78º andar da torre norte do World Trade Center com a sua cão guia Rosele. Leitura mais do que recomendável.

·        Já que citei de relance no meio do meu texto acima, deixo também a recomendação do livro Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos. Simplesmente maravilhoso!

·        Clique aqui e descubra Como adquirir o livro Dislexia Visual 

Comentários

  1. Que lindo, me emocionei aqui lendo sobre o ato heroico da Milena. É impossível impedir que as lágrimas nos escape dos olhos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Mari
      Obrigado por ler e comentar. Sempre que lembro-me desta história e da Milena fico emocionado. Um grande abraço.

      Excluir
  2. Muito emocionante. Parabéns.

    ResponderExcluir
  3. Lindo🥰amo seus textos, ainda mais quando você faz referência a sua infância, pois lembro de cada detalhe, lembro da sua casa. E esse texto em especial amei, como nossos filhos de pelo são maravilhosos 🥰

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Fran
      Obrigado por ler e comentar. Sim crescemos juntos e vimos as coisas mudando e os catioros e catioras trazendo alegria pras nossas infancias e alescencias.
      Um grande beijo pra vocês aí.

      Excluir
  4. Que história sensível! E voce esta aprimorando a técnica meu caro, conseguiu me prender na narrativa! Parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Felix
      Conseguir prender um leitor assíduo e multi-versado igual você é um grande feito pra mim heim.
      Um grande abraço e vem visitar eu.

      Excluir
  5. Aplausos, querido Binho! Abraço carinhoso

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ola amada mestre. Os aplausos chegaram até aqui e voltaram para a sua direção.
      Um grande beijo.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

O capacitismo na religião

Uma barata chamada Kafka

O pecado do conservadorismo

A (in)justiça divina

Limitações em família