Não, obrigado!
Era um
típico domingo de verão no sul do Texas, e as temperaturas em Houston batiam
novos recordes todos os dias. Daniel acordou cedo e, seguindo o seu costume de
bom cristão, arrumou-se para ir ao culto semanal. A igreja era o lugar onde ele mais amava estar. Ali
ele se sentia bem, se sentia importante e acolhido. Ao chegar ao templo,
procurou o assento no qual ele e seus amigos de longa data gostavam de estar
durante a celebração. Naquela comunidade ele se via igual aos demais, todos
unidos em um só propósito: seguir o bem e adorar o mesmo Deus. Seus amigos se
pareciam muito com ele, compartilhando de semelhantes histórias de vida, vindos
de uma mesma classe social, tendo a mesma cor de pele e com desejos e anseios muito
parecidos.
Após uma hora
dos mais belos cânticos entoados pelo grupo de louvor, e sincronizadamente
seguidos por toda a congregação, o pastor pegou o microfone e trouxe a
verdadeira palavra de Deus. Ele ministrou sobre as mais diferentes curas, tanto
da alma quanto do corpo. Daniel se sentiu inundado pelo Espírito do Senhor e,
ao fim do culto, se imaginava caminhando por sobre as nuvens. Um dos seus
amigos porém lhe interrompeu do seu transe:
“Queria
conversar com vocês sobre um assunto. Podemos tomar um café hoje a tarde?”
“Claro!
Como está muito quente, podemos ir naquela cafeteria nova que abriu aqui perto.
O ambiente é ótimo.”- disse o outro amigo.
Daniel
também concordou com o programa e os três se encontraram na Cafeteria às seis
horas da tarde. O ambiente de fato era maravilhoso, e após entrarem pela porta
de vidro que dava acesso ao grande salão da cafeteria, já notaram que ali no centro ficava um enorme balcão em
formato circular, onde os funcionários trabalhavam na preparação dos diversos
tipos de café que o estabelecimento servia. Em ambas laterais do salão,
frondosas escadarias levavam ao mezanino, onde a grande maioria das mesas
estava colocada. Daniel e seus amigos, porém, acharam conveniente se sentarem
ali mesmo no térreo e deliciarem seus cafés, bem como os belos quitutes que
haviam pedido no balcão.
A conversa
rolava solta entre os três companheiros de congregação. O rapaz que havia
convocado o encontro contava aos demais sobre algumas aventuras que estava
enfrentando na vida, e Daniel prestava bastante atenção à história do seu
amigo, ao mesmo tempo que saboreava seu café e também desfrutava do sofisticado
ambiente que o rodeava. Entretanto, de repente uma cena se passou e seu foco
foi completamente transportado da conversa que acontecia ali na mesa. Daquele
momento em diante ele só tinha olhos para o que acontecia na escada que descia do
mezanino.
Por mais
que seus amigos o chamassem, Daniel não tirou o foco da cena que se passava
diante de seus olhos. Primeiramente ele viu um belo e jovem casal. Eles desciam
as escadas bem devagar e mantinham sua atenção em uma criança que vinha logo
depois deles. Era um menino lindo, muito sorridente, conversador e que
aparentava estar muito confiante com sua tarefa de vencer os degraus abaixo,
apesar de não parecer ter mais do que 3 anos de idade. O casal da frente, que
muito provavelmente eram os seus pais, sorriam largamente e se demonstravam
muito orgulhosos do filho que vencia sozinho cada patamar rumo ao térreo. Ao
lado do menino havia outra mulher, que poderia ser a tia ou simplesmente uma
amiga do casal. Ela era linda, tinha cabelos escuros e encaracolados e o
sorriso mais perfeito do mundo. Todos focavam nos esforços do pequenino para
descer os degraus e aparentavam estar muito felizes e relaxados. Porém, o que
realmente chamou a atenção de Daniel foi uma quinta pessoa que estava naquele
grupo. Juntamente com o belo casal, seu destemido filho e a linda moça de
cabelos encaracolados, descia um homem também muito sorridente e que igualmente
expressava toda a sua alegria em acompanhar a jornada da pequena criança escada
abaixo. Ele ia caminhando degrau a degrau com uma dificuldade semelhante à a do
menino, entretanto ao invés de segurar na mão do casal ou da linda moça de
cabelos encaracolados, ele tinha consigo a sua bengala. Degrau adegrau ele ia
então tateando os próximos passos, ao mesmo tempo que sorria e conversava com
seus companheiros de declive. Ao chegarem ao térreo os pais simularam palmas
para felicitarem ao pequenino pela sua pequena grande conquista, e todos sorriram.
O rapaz com a bengala segurou então no braço da linda moça de cabelos
encaracolados e todos seguiram descontraídos para a porta de saída.
“Daniel, e
você? O que acha que eu deveria fazer agora?”- perguntou em voz alta um dos
amigos, interrompendo assim a observação de Daniel.
“O que?
Ah... Desculpe, eu não estava prestando atenção ao que vocês estavam
conversando. Fiquei vidrado ali na escada. Vocês notaram esta família que
acabou de sair pela porta?”
“Como
assim? Vi sim, eles estavam com uma criança pequena descendo as escadas, né? O
que tem eles?” – perguntou intrigado um dos amigos.
“Vocês não
viram que o rapaz era cego? O que saiu de braço dados com uma moça bem
bonita?”- disse Daniel, um tanto quanto indignado.
“Ah, sim.
Eles acabaram de sair pela porta e estão conversando ali no estacionamento.”
“Eu preciso
ir lá falar com aquele rapaz. Deus está tocando no meu coração para eu orar por
ele. Eu volto já!”
Os amigos
nem tiveram como reagir à brusca saída de Daniel da mesa. Logo viram o amigo
passar pela porta de entrada da cafeteria e ir em direção ao grupo que
conversava ali no estacionamento.
Daniel saiu
então ao ar livre e sentiu o intenso calor que pairava no ar texano. Não teve
nem tempo para refletir sobre o impacto da súbita inversão térmica que cobria
seu corpo, afinal a adrenalina inundava todo o seu ser. Viu que as cinco
pessoas que almejava estavam conversando atrás do carro estacionado de frente
com a porta que acabara de passar. Ele ainda teve tempo de notar a plaquinha
azul que indicava pessoa com deficiência pendurada no painel do veículo.
Encheu-se de coragem e caminhou em direção daqueles que eram o seu alvo. Eles conversavam
e riam bastante. Daniel se aproximou então do homem que aparentava ser o pai da
criança e começou a falar:
“Vocês são
todos da mesma família?”
O pai se
demonstrou surpreso com a interrupção brusca do desconhecido, mas respondeu
cordialmente. Explicou que a mulher do lado era sua esposa e que com ela estava
o seu filho. Finalizou apontando para a
linda moça de cabelos encaracolados e para o homem cego dizendo que eram seus
amigos.
“Ele é o
meu marido!” – disse a moça de cabelos encaracolados a Daniel ao ouvir a
conversa. Ela segurava o braço do homem cego parademonstrar de quem estava
falando.
O homem
cego não havia se dado conta da aproximação de daniel, e seguia conversando com
amãe do pequeno menino. Quando sua esposa lhe tocou o braço porém, ele tornou
sua atenção para a sua direita e ouviu a não familiar voz de Daniel.
“Queria
saber se ele quer que eu ore para Jesus curá-lo.”- disse Daniel um tanto relutante,
mas se direcionando para a mulher de cabelos encaracolados.
“Desculpa,
não entendi. Você pode repetir, por favor?”- disse o homem cego.
Daniel
então sentiu que não era momento de titubear. Mudou o seu foco em direção ao
homem cego e falou com coragem:
“Eu vi você
lá dentro caminhando com a sua bengala. Bem, Eu queria te dizer que Jesus é
poderoso para te curar se você permitir que eu ore por você. Você estaria
aberto para isso?”
“Não,
obrigado!” – o homem cego foi cordial, porém enfático.
“Ah, ok! É
que eu já vi muitos milagres acontecendo e sei que Jesus pode te curar...”
“Eu
realmente te agradeço. Mas, não!”- interrompeu o deficiente visual.
“Ok. Eu não
vou te forçar a nada...”
“Obviamente
você não iria me forçar. Eu de coração agradeço.” – disse novamente o cego com
um sorriso no rosto.
Daniel
então se despediu e voltou à mesa na parte interior da cafeteria, onde seus
amigos lhe esperavam para continuar a conversa.
...
De fato
fazia muito calor naquele domingo. Marida e eu trabalhávamos na preparação das
nossas marmitas da semana que estava para começar, quando recebemos uma mensagem
do casal de amigos Maurien e Hermano nos convidando para um café no fim da tarde.
Ficamos muito felizes, afinal fazia um tempinho que não sentávamos para jogar
um papo fora com eles. Chegamos ali na cafeteria por volta das cinco da tarde e
nos abraçamos calorosamente. O pequeno Oliver estava um pouco tímido no príncípio
e não largava as pernas da mãe. Mas isso obviamente não durou muito. Assim que
subimos para o mezanino e encontramos uma mesa para sentar e conversar, ele já
se tornou a principal estrela do ambiente. Falava e sorria bastante, também
chamou a tia Carol para brincar de esconde-esconde. Além disso, ele colocava alguns
de seus brinquedos na minha mão para que eu pudesse tatear, conforme seus pais
lhe haviam orientado a fazer. Eventualmente ele se acalmou e passou a jogar no
celular. Nós então nos engajamos nas mais diversas conversas e tivemos
realmente um ótimo tempo juntos. Falamos sobre a vida, o universo e tudo mais,
desde dificuldades do trabalho, política, culinária, viagens e literatura. Após
umas duas horas de divertidas conversas,resolvemos ir embora e nos prepararmos para
a segunda-feira que estava logo ali. Ollie quis descer a escada sozinho, afinal
era muito corajoso e destemido. Seus pais cuidaram a cada passo do pequenino,
mas o incentivaram até o último degrau. Ao fim celebramos com muita alegria a
sua conquista escada abaixo.
Eu não sei
afirmar ao certo se Daniel estava de fato com dois amigos, ou se tinha consigo
alguma criança ou ainda a namorada ou esposa. Também não estou seguro que estava
sentado no primeiro andar e me assistiu descendo as escadas, ou se estava
também lá no mezanino. Tampouco posso afirmar que ele é de uma igreja neopentecostal,
tradicionalista ou ainda uma vertente mais sectária do cristianismo. Aliás, nem
ao certo posso dizer que seu nome é Daniel, afinal, como vocês podem observar
no diálogo acima, ele nem sequer se apresentou quando nos abordou no estacionamento.
A única coisa que posso afirmar com certeza é que a minha presença ali na
cafeteria teve um impacto muito significativo no seu dia. Daniel , sem sombra
de dúvidas, ficou bastante incomodado em ver um homem batendo sua bengala ali
naquele ambiente. E a prova disso é que ele saiu da onde quer que estava, no
frescor do ar condicionado e com o agradável aroma de café, para se expor a uma
temperatura de 40 graus, só para falar comigo. Então, sim! Algum tipo de incômodo
ele sentiu ao me ver ali dentro daquela cafeteria. Por isso, este texto aqui
não diz respeito a mim, e sim ao Daniel.
Vivemos em
uma sociedade na qual o assunto pessoas com deficiência é cada dia mais bem
visto. Falar de acessibilidade e inclusão tem se tornado algo mais comum dia após
dia. Eu diria ser praticamente impossível alguém hoje em dia ter um pensamento retrógrado
e eugenista a respeito de pessoas com deficiência. Se alguém de verdade pensa
que estes corpos deveriam ser “descartados”,, jamais encontraria espaço para
falar tal atrocidade abertamente. Ou pelo menos é assim que eu prefiro
imaginar. Entretanto, apesar da esmagadora maioria das pessoas estarem OK com a
existência de deficientes, não é bem assim quando estes indivíduos resolvem
ocupar os espaços públicos. Novamente, eu não poderei jamais dizer qual foi o
gatilho na cabeça do Daniel para achar que ele poderia vir falar comigo e
sugerir uma cura milagrosa que mudaria a minha condição de deficiente visual.
Não sei se foi o simples fato de eu aparentemente estar feliz no mesmo ambiente
que ele; ou de ele imaginar que eu estava bem acompanhado e ter sido bem
tratado por meus pares e também pelos funcionários do estabelecimento. Também penso
que talvez ele tenha percebido que, apesar de eu mesmo ter dificuldades para
descer as escadas, não deixei de participar da pequena festa em celebração à
conquista do Ollie degraus abaixo. Desta forma, a única dedução que posso realmente
fazer é que Daniel se sentiu muito mal ao me ver ali na cafeteria e pensou que
algo precisava ser feito para que ele não mais tivesse que presenciar um cego no
mesmo ambiente onde ele conversava com seus amigos, namorada, filhos, ou com quem
é que estivesse consigo. A ação que ele deveria tomar então era exercer a sua
fé para mudar aquele homem cego, mesmo que isso fosse extremamente constrangedor
para todos os que presenciassem aquela intervenção.
Bem, enquanto
a mim, continuarei frequentando os lugares que desejo estar. Seguirei ocupando
os espaços que tenho vontade, seja com a minha linda e maravilhosa Marida, com
os amigos incríveis que a vida me deu, com a família abençoada que tenho o
privilégio de ter nascido, ou até mesmo sozinho. Já ao que diz respeito ao
Daniel... eu genuinamente torço para que ele resolva os seus próprios dilemas!
Weber
Amaral
Notas:
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Quantos detalhes! Participei ativamente do contexto! É vida que segue! Vida normal! Porém nosso Deus é o Deus do impossível! Elle tudo pode! É só crer! Saudades de vc! E da maridão!🥰
ResponderExcluirNossa, não deve ter sido legal ter ouvido isso. Se por um lado eu posso tentar entender que a pessoa teve boas intenções, por outro também penso “será que essa busca incessante pela cura é uma forma sutil de não aceitação?”
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