A (i)moralidade bíblica

Quando eu era adolescente lembro-me de ter ido a um casamento em uma Igreja evangélica que não era a que eu costumava frequentar. Tudo estava muito bonito na cerimônia, desde os cânticos, passando pelos belos trajes dos convidados e também a decoração da igreja - tudo perfeito. Como de costume em qualquer igreja cristã, o pastor (ou padre na igreja católica) toma a palavra e celebra a união do casal. O presbítero daquela congregação era bem conhecido e querido na cidade e seu discurso corria muito bem, afinal ele realmente tinha o dom e a eloquência para falar direto ao coração das pessoas. Porém, uma de suas frases me chocou profundamente, quando, de uma forma bem agressiva e indelicada, ele começou a falar sobre a postura moral que um casal cristão evangélico deveria assumir dentro do matrimônio e culminou seu discurso com a frase: “Imaginem vocês, tem casal que comete o absurdo de levar filme pornográfico para dentro do lar”.
Logicamente, poderíamos aqui analisar a imensa indelicadeza do pastor diante daquele momento único de celebração do amor na vida daquele casal, entretanto, o ponto que quero abordar aqui é essa postura moralista geralmente adotada dentro do meio cristão.

Justamente por eu ter crescido dentro de uma igreja evangélica e ter, desde cedo, frequentado com uma relativa dedicação aos cultos e escolas dominicais, eu posso dizer que estudo a Bíblia desde pequeno; isto é, já a li inteira e por alguns trechos já passei inúmeras vezes. Ou seja, este é um assunto que tenho um certo conhecimento e, de fato, sou bem fascinado em entender a influência da religião cristã nesta sociedade moderna que vivemos.

Há alguns dias atrás, a Marida, de certo vendo todo esse meu interesse pelo assunto e também por talvez querer compreender melhor as minhas premissas de vida, propôs que começássemos a ler a Bíblia juntos. E assim o fizemos.

Para você que não está muito familiarizado com a Bíblia, ela é estruturada em duas grandes seções:
Image result for bíblia sagradaO Velho Testamento, o qual é uma coleção de 39 livros na versão cristã protestante ou 46 na católica. Ele discorre sobre a história da origem do mundo (Gênesis) até o período que precedeu a vinda de Jesus. Ele também se assemelha, e muito, à Torá, livro sagrado do judaísmo
O Novo Testamento, que é composto por 27 livros e conta a história da vinda de Jesus (evangelhos), passa pelo surgimento da igreja cristã primitiva e culmina com a visão escatológica do Apocalipse. Essa seria, então, a parte não adotada pelos judeus.

Pois bem, a idéia da Marida era, portanto, que lêssemos desde o princípio, ou seja, começar do Gênesis, e foi exatamente assim que fizemos. Ora, este livro é dividido, por sua vez, em 50 capítulos e trata basicamente da origem do mundo, da criação da vida humana (Adão e Eva) e conta como o povo hebraico se originou.
Contudo, algo que a Marida não sabia era que, logo no começo da Bíblia, já é possível encontrar histórias muito contraditórias e seguramente imorais diante da perspectiva atual da nossa sociedade. Exemplos como: após Caim matar seu irmão Abel, a grande punição dada por Deus foi não deixar que ele morresse, mas que tivesse muitos filhos e gerações por vir; além disso, há também Abraão mentindo que sua esposa Sara era sua irmã e entregando-na para o estupro aos senhores dos lugares onde eles chegavam; também há a estranha relação de triângulo amoroso entre Abraão, Sara e Agar, a sua concubina; e, por fim, a bizarríssima história das filhas de Ló, que embebedaram seu próprio pai dentro de uma caverna para que pudessem ter relações sexuais com ele - lembrando que Deus previamente lhes julgara como “pessoas justas” e acabara de tirá-los de Sodoma e Gomorra, cidades estas que haveriam de ser destruídas pelo fogo divino.
Diante da minha perspectiva, esta não foi a primeira vez que parei para ler o livro do Gênesis e, além disso, como já mencionei, sempre o estudei na igreja, ou seja, tudo isso não me causou maiores espantos. Contudo, para a Marida seria sim a primeira vez lendo este livro por completo, e como não haveria de ser diferente, um pouco antes de chegarmos ao capítulo 25 (ou seja, metade do livro), ela já estava totalmente chocada com tudo que estávamos lendo.

Entretanto, aqui vale uma pausa para elucidar que, caso você não esteja muito habituado (ou habituada) a conviver conosco, eu me casei com uma mulher de uma sofisticação única, inteligente e de uma mente extremamente aberta. Ela, apesar de ter uma origem simples, cresceu rodeada por um ambiente artístico e literário e, além disso, sempre foi uma aluna exemplar. O resultado é que hoje é uma pessoa excelente em tudo faz. Contudo, o que mais me fascina na sua personalidade é sua flexibilidade e diversidade de conhecimento. Ela adora pratos sofisticados e de preparo rebuscado, mas ama mesmo é comer arroz, feijão, ovo frito e farofa; leu vários clássicos de Dostoevsky, Flaubert e Machado, mas também é uma exímia jogadora de truco. Ou seja, apesar de todo o requinte da sua personalidade, ela também é uma mulher de uma simplicidade bem extravagante, que sabe apreciar as pequenas coisas da vida com uma felicidade e simplicidade que são só dela. 
            Bem, eu poderia ficar até o ano que vem aqui louvando as qualidades da minha Marida, porém o principal ponto desta pausa é deixar claro que a ela está bem longe de ser considerada moralista e que o espanto com os textos bíblicos que lemos é sim compreensível.
Voltemos, então, ao Gênesis (o da Bíblia, neste caso).

Bem, já vimos portanto que que a Bíblia possui passagens bem estranhas e que nem sempre são mencionadas por igrejas (ou você acha que algum ministro conta a história da caverna em suas pregações?). Além disso, eu posso lhe garantir que existem muitos outros textos dentro do livro sagrado cristão que, se lidos com cuidado, vão revelar comportamentos e histórias muito controversos do ponto de vista moral que é aceito pela nossa sociedade contemporânea.

Contudo, neste exato momento, você pode estar aí lendo este texto e querendo contra-argumentar que a Bíblia foi escrita em um contexto histórico moralmente muito distante do nosso tempo, que se tratava de uma civilização primitiva, ou ainda que o livro é composto não por estórias literais, mas sim de anedotas e alegorias que revelam a vontade de Deus na Terra. 
Pois bem, eu aceito, de todo o meu coração, a sua argumentação. Eu não estou aqui para questionar a Bíblia em si e muito menos a sociedade na qual ela foi concebida. O meu maior interesse neste texto é oferecer um contraponto à sociedade na qual você e eu vivemos hoje.

Então, se a Bíblia é assim, por que alguns cristãos a usam como exemplo e sustentação para suas condutas moralistas? Como pode um religioso bradar aos quatro cantos, com uma Bíblia na mão, contra o divórcio, a homossexualidade, o carnaval ou outros assuntos que saem da “bolha” idealizada pelos cristãos da sociedade ocidental? O que faz o pastor do primeiro parágrafo ter tido tal comportamento em um discurso de casamento?
Eu, honestamente, não consigo ter uma resposta para isso
Dessa forma, alguém que tenta apoiar o seu modo moralista de ver a vida sobre os alicerces da religião cristã, equivoca-se profundamente, principalmente porque a Bíblia pode sim ser altamente taxativa em muitas de suas passagens, porém em outros trechos ela se revela de forma bem liberal.

Ora, se não da religião, de onde vem então o moralismo?
No ponto de vista deste que vos escreve, o moralismo vem do preconceito. O preconceito, por sua vez, vem do medo. E o medo, por fim, vem da falta de conhecimento.

Esta é uma discussão que quero continuar em outros textos, mas por hora deixo aqui, sem qualquer ironia, um trecho bíblico descrito no livro de Oséias (cap 4 vers 6): “O meu povo perece por falta de conhecimento”. 
Tanto o medo quanto a insegurança causados pela falta de instrução fazem com que a nossa sociedade tenha esse grande viés moralista nos dias de hoje. E, à medida que não nos cansamos de julgar uns aos outros, aumentamos ainda mais a nossa desunião.

Weber Amaral

  • Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.

Comentários

  1. Parabéns. ...acho que estou aprendendo algumas coisas.

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    1. Obrigado Eliane. O bonito da vida é sempre aprendermos uns com os outros. Beijos

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  2. Grande Web! Excelente texto, podemos discutir bastante coisa a partir dele.
    O que os teólogos argumentam é que a liturgia religiosa, a prática moderna aceita pela moderna igreja, apregoa o amor e condena certas práticas. É claro que existe um enorme choque entre nossas mentes racionais e lógicas do nosso tempo e esse tipo de argumentação, de lógica seletiva. Mas o interessante é que a igreja não é a única a usar esse tipo de retórica, que é igualmente tida como natural em outros ambientes. Posso citar como principal exemplo os políticos socialistas, que apregoam uma sociedade igual, justa e livre de exploração mesmo que na prática a grande maioria dos modelos de governo tenham resultado em extrema miséria e na falência dos governos. Não estou fazendo aqui nenhuma apologia ao capitalismo não, inclusive posso citar os políticos liberais como outro exemplo de retórica sem vínculo de sucesso com as experiências práticas. De qualquer forma, esses pontos de vista ( catolicismo/cristianismo, socialismo e liberalismo) tem pontos de vista válidos em sua essência, e é essa dialética, essa luta entre esses valores, que criou o consenso que temos de moderna democracia social.
    Em suma, o perigoso é ter esses textos e valores como absolutos ao invés de usá-los como uma escada, a grande ameaça ao nosso modo de vida atual são os que tentam de forma tirana impor os seus valores como únicas verdades ao invés de entender que todos esses sistemas têm contradições e defeitos incuráveis. Apesar de terem grande importância na construção dos valores da nossa civilização, esses é outros valores juntos são apenas tijolos que compõem as paredes da casa do consenso da democracia.

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    1. Grande José.
      Então, como eu citei no texto, eu aceito as argumentações que criam uma flexibilização da interpretação literal das escrituras (eu realmente aceito, - por mais que elas pareçam mais uma desculpa para a aceitação de um pacote ideológico pré pronto). Novamente, eu não quis criticar a bíblia em si, e sim a sociedade atual na qual vivemos.
      Gostei muito da sua sitação também sobre o fundamentalismo da interpretação ao pé da letra de quaisquer ideologias, e aqui eu defendo a própria Bíblia, que diz coisas como "Ouvi de tudo e sabei o que é bom", e também "A letra mata, mas o espírito vivifica". Além disso, sempre ouvi a palavra "discernimento" dentro da igreja (desde pequeno). e essa é uma mensagem muito forte dentro do protestantismo - que é o cerne de toda a reforma de Lutero.
      Cara, isso já me deu ideias para vários outros textos.
      Um grande abraço .. é sempre muito bom divagar com o senhor.

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  3. Discussão interessante, Weber, gostei do texto.
    Na minha visão o moralismo vem do medo realmente. Medo de aceitar a própria condição (humana/imperfeita/imoral).
    Na busca por sermos aceitos, nós (seres humanos) tendemos a querer esconder características vistas como inadequadas. E incomoda ver algo no outro que não aceitamos em nós mesmos.
    Se ainda não viu, recomendo o documentário "The Shadow Effect" da Debbie Ford. É bem interessante.

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    1. Oi Bia
      Isso que vc disse faz todo o sentido mesmo. Inclusive, no próprio livro do Genesis, depois que Adão e Eva comem o fruto do conhecimento, eles se percebem como "nus". Ou seja, até então, eles não tinham probelmas com a sua falta de vestimentas, aceitavam a sua condição (como vc disse). Mas de repente, atra'ves da sua rebelião contra Deus, tiveram medo de ser e estar daquela forma.
      Logicamente, isso tem um fundo religioso, mas também vale a discussão.
      Também me deu ideia pra outro texto.. :-p.
      Obrigado pelo comentário. :-)

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  4. Binho,
    Sou muito grato por tudo que aprendi contigo, e como sempre me ensinou coisas que me ajudaram no meu amadurecimento espiritual. Nunca fez tanto sentido suas palavras como passaram a fazer nos últimos anos.
    Obrigado por me mostrar um cristianismo verdadeiro, e não uma manipulação

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    1. Olá desconhecido (que eu sei qm é)
      Eu sei que o últimos anos foram "diferentes", mas também acredito que sejam libertadores. não é?
      Cara, estarei sempre aqui pra conversar viu. Um grande abraço pra vc e tua família.

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