Do Tetris ao Super Bowl

Um amigo meu, o Lue, começou há algum tempo a praticar um jogo de celular que é, em essência, muito parecido com o clássico Tetris, mas que também depende de muita capacidade de memorização e agilidade mental. A empresa desenvolvedora do jogo também possui um ambiente virtual no qual pessoas de vários lugares do mundo podem se inscrever e participar de competições diárias. O Lue, então, dedicou-se durante um tempo considerável e, como é muito astuto e perspicaz, logo começou a competir para valer. Não demorou muito, pois, e ele começou a conquistar vários torneios, e a cada semana que se passava ele nos surpreendia com novos prêmios que chegavam em sua casa; fato este que atestava sua enorme competência naquela atividade. 
Há alguns dias atrás, porém, ele mandou uma mensagem a um grupo de amigos dizendo que o prêmio daquele fim de semana que estava por vir seria, nada mais nada menos do que dois ingressos para o Super Bowl LIV, em Miami.
            Caso você não esteja muito familiarizado com o assunto, o Super Bowl é a final da NFL (liga nacional de futebol americano) e, além disso, é simplesmente o evento mais aguardado e visto dos Estados Unidos e, por consequência, um dos maiores do mundo. Ingressos para o jogo custam na casa dos milhares de dólares e, mesmo assim, são muito difíceis de serem encontrados. A televisão estadunidense faz, portanto, uma gigantesca cobertura do evento, que também conta com um super show de músicos mundialmente famosos durante o intervalo.
            Pois bem, quando o Lue nos contou que haveria de participar de uma competição na qual ele poderia ganhar o mencionado prêmio, todos demonstraramos muita empolgação e torcemos bastante pela sua vitória. 
E não é que deu certo? O lazarento do Lue foi, de fato, o grande campeão da competição e faturou, portanto, o grande prêmio. Foi demais, todos lhe parabenizamos muito e ficamos super animados por ele, só imaginando o quão grande seria a experiência que ele estava para viver.

            Foi quando, após alguns poucos dias do anúncio de sua vitória, ele me ligou:
            “Oi, tudo bem?” - perguntou.
            “Opa, tudo ótimo e você? Tudo preparado para a viagem e para o grande jogo?”
            “Então, exatamente sobre isso que eu queria falar contigo. Você quer ir comigo para Miami para assistirmos o Super Bowl?”
           
            Ao ouvir aquela proposta, fiquei atônito e sem reação. O Lue calmamente me contou que a Livinha (sua linda filha de 6 meses) não estava totalmente recuperada de um resfriado e que, por isso, a sua esposa Lorena decidiu não acompanhá-lo na viagem.
            Então, com toda a minha perplexidade, fiz várias perguntas de como seria a logística e quis saber de detalhes, já que faltavam somente cinco dias para o jogo e existiam algumas dificuldades para encontrarmos melhores vôos e hotéis em Miami, visto que a cidade estaria superlotada devido ao imenso evento que estava para receber. Eu lhe disse, então, que iria pensar, mas que responderia no mesmo dia.

            Seguramente, você deve estar aí pensando neste exato momento, “Como assim você já não aceitou logo de cara? O que havia para ser cogitado?”. E eu posso, facilmente, entender a sua indignação, afinal era o Super Bowl e esta seria a oportunidade de uma vida.

            Pois bem, conforme já citei por aqui, a vida de alguém que gradativamente vai perdendo um sentido tão essencial quanto a visão não é nada fácil e isso ocorre, principalmente, quando é necessário encarar o fato de que existem certas coisas que você simplesmente não consegue mais fazer.
            Como conto em alguns textos, sempre amei jogar futebol (o verdadeiro soccer, neste caso), pois sempre foi um momento de descontração e relaxamento para mim. Contudo, chegou um determinado momento na minha vida adulta no qual eu me dei conta que não era mais divertido praticar aquele esporte, pois eu tinha medo de não ver a bola, receio de correr e esbarrar em alguém e me machucar seriamente. Ou seja, ao passo que eu não mais me regozijava com o jogo, eu parei.
            Também foi muito difícil quando eu me dei conta que não era seguro eu dirigir durante a noite. Até que então chegou o dia (bem triste) quando levei meu carro a uma agência e o vendi; isto é, daquele momento em diante estava definido: “Eu não mais dirigiria”. - Só um pequeno parênteses aqui: eu passo muito longe de ser um apaixonado por carros e também ideologicamente sou a favor de transportes de massa, mas é inegável a liberdade que possuir e dirigir um carro nos proporciona.
            Mas, se você já conversou comigo por mais de dez minutos, saberá que uma das minhas maiores paixões sempre foi viajar - isso sim me traz um grande sentimento de liberdade e empoderamento. Contudo, assim como os exemplos acima, gradualmente eu tive que ir adaptando o meu modo de viajar e, portanto, desde a minha última crise na visão, eu não fui a nenhum canto, nem sequer de ônibus, sem a companhia da Marida. Mesmo porque, na situação visual na qual eu estou agora, até mesmo executar algumas tarefas bem simples, tais como localizar o portão de embarque ou preencher um formulário qualquer, tornou-se muito mais complicado. 
E é nesse ponto que voltamos ao Super Bowl. 
Ou seja, aceitar passar o fim de semana com o Lue significaria ter que depender dele em algumas situações que geralmente eu recorro somente à Marida, ou simplesmente não faço. 
Por isso hesitei.

Com toda essa relutância na minha cabeça, eu fui então falar com a Marida e, a despeito de todos os temores e riscos, chegamos juntos à conclusão que eu deveria sim ir a Miami. Liguei então para o Lue e acertamos, naquele mesmo dia, todos os detalhes da viagem.
            Ou seja, eu fui.

            Se você já leu pelo menos um dos meus textos, já sabe que, de forma alguma, eu estou aqui para comentar do KC Chiefs, da Shakira ou de como foi o Super Bowl como um todo. Não é esse o objetivo deste texto; deixo este assunto para quando estivermos (você e eu) numa mesa de bar, tomando um suco e jogando papo fora.

            Voltando, então, à minha relutância, o ponto-chave que a Marida usou para convencer que eu deveria sim assumir os riscos de uma viagem sem ela foi: 
“Binho, é o Lue, ele é seu amigo, conhece as suas dificuldades e, caso você precise de qualquer ajuda, ele vai te estender a mão com toda a alegria. Ele simplesmente quer a sua companhia. E eu tenho certeza que, assim como você pode se sentir confortável, ele também estará super a vontade se você estiver lá com ele.”.
            E assim foi. 
Como Lue e eu convivemos muito de perto, ele é uma pessoa com a qual jamais me incomodei em pedir ajuda e que, tão pouco, faz-me sentir constrangido perante uma situação de incapacidade minha. Acreditem, a vida de um deficiente é sim repleta de momentos frustrantes e, mais que isso, que podem se tornar extremamente humilhantes, ao passo tarefas comumente simples não podem ser executadas, tais não poder ler o cardápio de um bar, restaurante ou carrinho de cachorro quente.
            E, sobretudo, isso me faz refletir, e muito, sobre a dependência dos outros que eu adquiri. Dependência esta que não é proveniente de algo que eu não sei fazer, como alguém que quer comer um ovo frito, mas que não sabe como fritá-lo; porém, no meu caso, sempre vem o receio que sequer terei a certeza que consigo acertar o ovo dentro da frigideira. 
Sim, eu dependo dos outros. E simplesmente dizer essa singela frase já me causa muito desconforto.

Contudo, no meio desse vendaval de enfrentamento da realidade, a lógica de Sartre de certa forma me esclarece e me dá base para entender que sim, eu dependo, em muitas situações, da ajuda alheia, mas, que apesar de esta ser a minha realidade (existência), ela também é a minha porta de entrada para a minha própria independência (essência).
Portanto, eu sou tão livre e independente quanto você, porém de uma forma diferente.

Ou seja, no fim das contas somos todos seres humanos e podemos até sobreviver em um completo isolamento social, mas a própria evolução da nossa espécie provou que só conseguimos ser excelentes se estivermos em comunidade.

Para concluir, existem dois pontos principais que consigo destacar deste fim de semana de Super Bowl. O primeiro é a naturalidade dos fatos, aquela mesma naturalidade que citei no texto O livroque não li. Não houve um único momento pesado sequer durante a viagem, ou seja, graças à amizade e cumplidade entre nós, mesmo Lue tendo que me estender a mão em alguns momentos inéditos para ele até então, tudo fluiu de maneira extremamente natural e, acima de tudo, leve (leveza esta que também já citei por aqui).
O segundo ponto fundamental é que, quando eu estava refletindo sobre a composição deste texto, eu comecei a fazer uma lista mental de pessoas que, assim como o Lue, também me deixariam muito confortável em uma situação similar e, para a minha total alegria, a tal lista é grande. Isso me faz novamente ser grato pelas amizades incríveis que cultivei durante a vida e por saber que são muitos os que eu posso confiar e que jamais me deixariam constrangido ao pedir ”Você me mostra onde é o banheiro? Posso segurar no seu ombro e você me leva até lá?”.
            Dessa forma, você que me lê agora, dependendo do nosso nível de intimidade, talvez seja uma dessas pessoas que citei. Só quero te lembrar, então, que, além de futebol, eu gosto de basquetebol, voleibol, automobilismo, concertos musicais, teatro, palestras, boteco, churrasco, roda de samba, coxinha, hambúrguer e muitas outras coisas mais. Pode me chamar.  :-)

Weber Amaral

Adendo: Lorena possui um perfil muito legal no Instagram, no qual é ela conta os desafios de uma mãe de primeira viagem que opta por seguir com sua carreira profissional. Sigam lá - @lorena_vidadeworkingmom

  • Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.

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