O capacitismo na religião

Em um culto de domingo a noite, o pastor conduzia uma pregação sobre a passagem bíblica do Evangelho de João, capítulo 9, na qual Jesus curara um homem cego de nascença. Para tanto, o nazareno cuspiu no chão, fez um lodo com aquela terra e passou nos olhos do deficiente, que estava ali a mendigar (guarde bem essa informação). Por fim, pediu ao homem para que se lavasse no tanque de Siloé. E, após isso, ele pôde, então, ver.

            Como parte do ritual de um típico culto evangélico, ao fim da ministração da palavra, um músico começa a tocar uma melodia calma e reconfortante, enquanto o pastor convoca pessoas para receberem orações. Dependendo do assunto do dia, o apelo pode ser feito para que visitantes se convertam à fé cristã, ou para que os membros recebam bênçãos familiares, financeiras ou outras. Portanto, naquele dia, seguindo a temática de João 9, o pastor conclamou os fiéis a buscarem a cura de suas enfermidades. Várias pessoas, então, saíram de seus lugares e foram próximo ao pastor para receberem a sua oração.

            Um amigo, vendo que eu não me movera, virou-se para mim e disse: “Você não vai lá?”, eu simplesmente disse que não. A música, então, seguiu enquanto o pastor e outros membros seniores da igreja oravam pelos que desejavam receber a cura. Mais um tempo se passou e outra pessoa, que estava no banco de trás, tocou em meu ombro e também me perguntou se eu não gostaria de receber a oração do pastor. Eu respondi, novamente, que não. Quando parecia que a música estava para acabar, uma outra pessoa, que estava sentada em outro setor da igreja, veio também falar comigo: “Se você quiser ir lá na frente, eu vou com você!”. Eu agradeci, mas neguei. 

Resolvi, pois, que estava com sede e fiquei do lado de fora da igreja aguardando minha mãe e meu irmão saírem para que fôssemos para casa, afinal, eu tinha uma prova no primeiro horário da manhã seguinte.

           

Embora seja uma fonte geralmente rasa, com reflexões pouco aprofundadas e simplistas, a Wikipedia serve muito bem para um primeiro contato com um termo ou uma rápida elucidação de fatos ou conceitos. Por isso, irei citá-la aqui hoje.

Portanto, de acordo com a Wikipedia, o capacitismo é a discriminação e o preconceito social contra pessoas com alguma deficiência.

 

Bem, apesar de eu possuir local de fala sobre esse assunto, eu não quero ser a sua fonte primária sobre o capacitismo; portanto, caso você acaba de ter o primeiro contato com este termo, desejo, então, que você busque fontes mais robustas para entender o que este conceito significa e como ele afeta a nossa sociedade.

Mas, por que isso?

Primeiramente, porque, caso já tenha lido os demais textos deste blog, você já possui uma boa noção prática da aplicação do termo em muitas das situações que eu já contei por aqui. Além disso, eu considero que todos os tipos de discriminação não estão presentes neste mundo porque nós, indivíduos, somos maus; mas, ao contrário disso, eu acredito que o  preconceito é algo estrutural na nossa sociedade e que ele atua como um mecanismo de autodefesa para indivíduos com baixa instrução; afinal, como já citei por aqui, o preconceito tem a origem no medo e na insegurança do próprio ser. Portanto, eu jamais gostaria de ser a pessoa que dita as regras sobre capacitismo, racismo, misoginia, homofobia, xenofobia ou quaisquer outras formas de discriminação social.

 

Outro motivo que também me leva a não querer me aprofundar na conceitualização desse tipo de discriminação social é que eu gostaria aqui de abordar um assunto bem mais específico: a relação entre a religião e o capacitismo - que é exatamente o ponto que assumo ter mais a contribuir para esse debate. 

Portanto, como diria um famoso podcast brasileiro: “Senta, que lá vem polêmica”.

 Placa Sinalização Acessibilidade - Acesso para Deficiente Físico ...

Um dos pensamentos capacitistas mais obscuros e, portanto, prejudiciais revela-se através da ideia de que a deficiência é algo que deve ser superado ou corrigido, por isso, quando saltamos do convívio social para o religioso, pessoas com deficiência tendem a ser levadas a condicionar a prática da sua fé totalmente para a sua cura, e não para o seu próprio bem estar - que é o que deveria ser o motor de toda religião.

Ora, a prática da fé diz respeito à conexão do indivíduo com o sobrenatural (Deus), ou seja, ela jamais deveria se condicionar à cura das enfermidades de alguém. Contudo, apesar desse conceito ser interno da fé do próprio deficiente, como vimos na história que contei acima, a despeito da sua vontade, a própria sociedade religiosa conduz o deficiente a viver em função do tão esperado milagre. E é dessa maneira que o capacitismo se revela em sua forma mais cruel.

Quando a situação que eu contei acima aconteceu, eu tinha 16 (ou talvez 17) anos, ou seja, já estava na igreja há mais de uma década e, portanto, não foi a primeira vez que algo parecido me ocorreu. Lembro-me bem desse dia em específico principalmente porque eu havia passado por uma cirurgia há poucas semanas, o que me fez estar emocionalmente vulnerável e altamente estressado com toda a recuperação física, provas e trabalhos escolares atrasados, além da famigerada preparação para o vestibular.

 

Entretanto, eu entendo que existe uma linha tênue entre as pessoas quererem o seu bem e efetivamente lhe discriminarem por sua deficiência. No meu caso, assim como já citei por aqui, eu tento compreender que, aparentemente, as pessoas não sabem exatamente como ajudar e, portanto, tomam a única atitude que lhes está ao alcance: pedir a provisão divina - ou seja, orar. E isso é totalmente aceitável.

Contudo, deduzir que a existência de um deficiente está totalmente atrelada às suas limitações é a base fundamental de todo preconceito. E, novamente, qualquer pessoa que pratica uma fé, fá-lo para o seu próprio bem estar.

 

Voltando, portanto, a João 9, caso você se interesse em entender melhor o contexto bíblico, um dos discípulos, ao ver o cego a mendigar, fez a seguinte pergunta a Jesus: “Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?”.

Bem, infelizmente, assim como o discípulo que indagou Jesus, muitos cristãos procuram culpados para o que eles julgam não ser o “normal” e, por mais triste que isso possa parecer, no caso do deficiente, as suas mazelas são, geralmente, atribuídas a ele mesmo, o que seguramente gera um sentimento de culpa muito grande dentro de si. Eu, por exemplo, já escutei várias vezes de religiosos que “Deus não te curou porque você não teve fé suficiente”, ou que “A existência de pecado em você não permite que Deus te cure”, ou ainda, recentemente, que “Se você frequentar a igreja X, Deus certamente te curará”. Ora, tudo isso é totalmente contrário ao que o próprio Jesus ensinou aos seus discípulos naquele dia, ao dizer que ninguém havia pecado para que aquele homem fosse cego. Ou seja, muitos não conhecem a própria religião que seguem - vale aqui a referência ao texto O pecado do conservadorismo.

 

De todo o meu coração, de forma alguma eu vejo a prática religiosa como má, tão pouco comungo da ideia marxista de que a “religião é o ópio do povo”, nem pelo lado degradante, alucinógeno ou anestésico do termo; da mesma maneira que não creio que a religião em si promova o vulgamente conhecido “movimento de manada”. Por outro lado, eu sou crítico à massificação da prática religiosa, pois creio que a fé é uma experiência individual e que dessa forma ela deva ser experimentada e vivida.

            Também deixo claro que, apesar do título sugerir o contrário, a religião, por si só, não tem qualquer relação com o capacitismo; contudo, o grande problema que vejo, neste caso em específico, é a falta de informação e empatia dos fiéis a respeito de pessoas que convivem diariamente com as suas deficiências 

 

Portanto, independentemente da religião que você professa, caso você conviva com uma pessoa deficiente, ao invés de querer “consertá-la”, tende simplesmente aceitá-la como ela é. Conheça o ser humano que está sentado naquela cadeira de rodas, ou que usa um aparelho auditivo, ou que não possui uma mão. Descubra que ele também gosta de pizza Margherita, ou de sorvete de chocolate amargo, ou que curte assistir futebol ou ouvir música sertaneja; ou, ainda, que adora escrever em seu blog pessoal.

E, sim, você é livre para acreditar no que você quiser, inclusive que cegos podem enxergar, que surdos podem ouvir e que qualquer outro milagre pode acontecer; contudo, guarde isso para você e a divindade alvo da sua fé. E o mais importante de tudo: se você realmente acredita que exista um Deus e que a sua criação é perfeita, saiba que ele também criou o deficiente, do jeito que ele é.

 

Weber Amaral

 

Notas:

  • O podcast que citei acima é o Mamilos. Elas trazem sempre ótimas discussões que visam a convergência de pensamento em assuntos polêmicos.
  • Além dele, também recomendo o Anticast, que conta opiniões sobre o nosso cotidiano político e social. Eles também produzem o narrativo Projeto Humanos - recomendo a quarta temporada: O caso Evandro.
  • E não poderia de deixar do sugerir o meu favorito: Xadrez Verbal. Um periódio semanal sobre política internacional.
  • Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.

Comentários

  1. Binho, lindo texto. Continuo aprendendo muito com você e fico muito grato por isso.

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    1. Valeu Gandhi.
      Fico feliz de ter conseguido passar a mensagem (eu acho). Afinal, esse foi, seguramente, o texto mais difícil que já escrevi.
      Um grande abraço.

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  2. Fala meu caro, muito bom aprender o que é capacitismo. E aproveitando, gostaria de provocar o nosso olhar sobre a passagem bíblica que voce citou. Primeiramente temos que refletir sobre o que seria o milagre, pois eu pessoalmente não acredito em milagres. Outro ponto para refletir, seria o ensinamento que os "milagres" no caem do céu, depois que o cego conheceu Jesus (ou teve contato com os seus ensinos), ele só enxergaria se fosse até a fonte, deveria ser ativo nessa busca. E essa caminhada até a fonte seria a oportunidade para ele exercitar o que aprendeu com Jesus, e o milagre se realizaria dentro dele, fazendo ele enxergar o mundo de uma nova maneira.

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    1. Oi meu caro (que não colocou o nome)
      Adorei a provocação.
      E também acho super legal analisar as analogias que passagens bíblicas podem conter.
      Particularmente, eu acho que o poder do conhecimento é muito mais revelador que qualquer visão 20/20, audição perfeita, ou qualquer outra sentido extremamente aguçado.
      Eu adoraria debater tudo assim, no mundo das ideias - afinal, ideias sim são debatíveis.
      Contudo, infelizmente, casos reais de capacitismo acontecem na minha vida, assim como na de muitos outros.
      Acho importante contextualizar e também abstrair os termos e acontecimentos - sempre temos algo a aprender.
      Abraços.

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    2. Sensacional o texto, tio Binho! Muito bem estruturado e claro sobre um assunto bem difícil de se comunicar. Mais uma vez obrigado por compartilhar essas experiências com a gente!

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    3. Valeu Hermano
      Confesso que este foi o texto mais difícil de escrever até agora - por motivos técnicos e emocionais.
      Por isso fico muito feliz de receber o feedback que a mensagem foi passada.
      Abraços.

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  3. Texto difícil, mas muito bem detalhado! Cada um tem a sua crença à qual devemos respeitar! Nosso Deus é um só e Ele com certeza quer o melhor para cada um de nós! Devemos aceitar nossas limitações e viver bem conosco mesmo e com o próximo! Isso é divino! Mas Deus pode tudo e tudo no seu tempo! Não percamos a fé e a esperança em dias melhores! Você é especial para Deus muito especial para mim!❤❤

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    1. Olá Edvana. Com certeza, cada um tem sua crença e todos temos o direito de professá-la. Isso é indiscutível. O ponto aqui neste texto é só como tratamos as pessoas com deficiência.
      Só um comentário sobre oq vc escreveu. Também acho que devemos ter esperanças de dias melhores, mas também temos que aprender a apreciar o dia de hoje, do jeito que ele está. Não é pq está chovendo muito, que o dia está ruim. Por isso cabe a nós decidir entre aproveitar o dia de chuva ou somente ficar à espera do sol.Beijossss

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    2. Com certeza aproveito o dia de chuva!!!!!🥰🥰🥰🥰

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  4. Seu texto me ajudou a entender sobre a temática e a corelação com a religião de uma maneira muito objetiva, linguagem compreensível e direta. Obrigado!

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