O protagonismo assassino
Há cerca de 20 anos, houve um terrível acidente entre dois carros em uma
rodovia na saída de Cornélio Procópio. Foi uma grande tragédia, na qual,
infelizmente, cinco pessoas perderam a vida. Contudo, uma jovem mulher, apesar
de sofrer graves ferimentos, sobreviveu. Após ter ficado dias no hospital,
lutando por sua vida, ela teve alta. E, obviamente, a rádio local logo quis
entrevistá-la.
De fato, a cidade toda
queria muito ouvir o que a moça tinha a dizer sobre como foi o acidente, como
foi ter perdido uma amiga (que dirigia um dos carros) e o que ela sentiu ao
saber que a família que estava no outro veículo fora toda dizimada.
Durante
a entrevista, ela contou de maneira bem resumida o que acontecera naquele
trágico dia, dizendo que tudo se deu muito repentinamente, ou seja, que não se
lembrava muito bem dos detalhes. Lamentou, com emoção, a perda da amiga e citou
que ficou muito abalada ao saber da família do outro veículo. Após essa pequena
introdução, falou por alguns minutos o quanto se sentia privilegiada com o fato
de Deus tê-la salvado, e, naquele momento, entendia que sua existência ganhara
um novo propósito, e que dali em diante, viveria para esse novo ideal divino.
Seguindo
a linha de pensamento do texto
anterior, após uma conversa com minha prima Maura sobre uma de suas postagem em
uma rede social, resolvi reler, depois de anos, o livro bíblico de Jó.
Vou
abrir um parênteses aqui e dizer que creio que todo cristão tem sim a obrigação
de ler o livro sagrado da sua religião, contudo, de todo o meu coração, eu não
recomendo a leitura da Bíblia. Eu diria que mais da metade do livro não tem a
menor relevância, que há muitas passagens repetidas e que o excessivo moralismo
e estabelecimento de leis e regras de conduta (principalmente no Velho
Testamento) tiram o ar poético e místico que se espera de um livro sagrado;
porém, novamente, se você se denomina cristão, leia a Bíblia inteira mais de uma
vez e, o mais importante, entenda o contexto no qual cada texto está inserido.
Bem,
após essa pequena digressão, voltemos ao livro de Jó, o qual é um exemplo da
prolixidade citada nos trechos acima. O livro está dividido em 42 capítulos, e
a essência da história se passa, rapidamente, nos dois primeiros, quando Deus é
surpreendido com a visita de Satanás. Os dois começam a conversar e Deus
"se gaba" com o fato de Jó ser um homem íntegro, reto e temente a
Ele. O diabo contra-argumenta dizendo que Jó somente era fiel porque possuía
bens, riquezas, uma bela família e tudo mais. Deus, portanto, faz uma aposta
com o inimigo e diz que ele poderia ir à Terra e fazer tudo o que ele quisesse
com Jó (menos matá-lo), e garantiu que este, certamente, permaneceria fiel ao
Senhor. E foi exatamente isso que aconteceu: toda a família de Jó pereceu, suas
terras secaram, seu rebanho foi consumido por um fogo que caiu do céu, seus
amigos lhe abandonaram e seu corpo foi completamente tomado por “úlceras
malignas”. Na narrativa bíblica, entre os capítulos 3 a 39, Jó lamenta a sua
situação, mas, em nenhum momento blasfema contra Deus. Por fim, no capítulo 42
(último), Deus restaura a saúde, os bens e a família de Jó - tudo “em dobro”.
Bem,
se considerarmos o livro de Jó de essência poética, e não literal e histórica
(espero que você assim o faça), ele é, seguramente, um dos textos mais
difundidos em celebrações religiosas. Contudo, ele também é considerado de
significado muito controverso por estudiosos judaíco-cristãos. Eu mesmo já ouvi
várias interpretações serem postuladas acerca do livro, e algumas delas, até de
caráter escatológico. Portanto, não vou aqui fazer uma profunda análise sobre o
seu significado, mesmo porque, creio não ser capacitado para fazê-lo, contudo,
existe algo que me incomoda profundamente neste texto: o protagonismo de Jó.
Logicamente,
já que este é o livro de Jó, é esperado que ele seja o protagonista da
história, contudo, o capítulo 2 narra que seus filhos e filhas estavam comendo
e bebendo na casa do mais velho, quando um vento forte do deserto derrubou a
casa e todos morreram; além disso, quando o fogo do céu caiu sobre o rebanho de
Jó, nenhum dos seus servos foram poupados, e tudo isso aconteceu para que Deus
“ganhasse a aposta” que fizera com Satanás.
Será que as vidas
dos demais não valiam nada? Ou seria a existência de Jó tão mais importante
assim? Por quê?
Bem,
tanto no exemplo da sobrevivente do acidente de Cornélio Procópio quanto no de
Jó, vemos uma aplicação do sentido da vontade divina para justificar uma benção
recebida, mas, indo além do que conversamos no texto anterior, aqui também
notamos a importância excessiva que damos a somente um ator das várias
histórias que nos são contadas, ao mesmo tempo que menosprezamos aqueles que
sofrem decorrente daquela mesma situação.
Basta
analisarmos com um pouco mais de atenção a sociedade que vivemos hoje, e logo
notamos os inúmeros casos de pessoas oprimidas pelo sistema que nos rege. Para
tanto, lembre-se do exemplo do presidente de uma famosa corretora de
investimentos brasileira que afirmou, em maio de 2020, que o pico da pandemia
da Covid-19 já havia passado para as classes mais altas; ou seja, além do
enorme desprezo pela vida dos menos favorecidos, ele também demonstrou que o
protagonismo da elite é total, isto é, todos os demais são meros figurantes no
filme desta vida.
E
dessa forma, a história parece somente ocorrer para os protagonistas.
Isto é, no decorrer da
história, mesmo quando evoluímos de modelos políticos absolutista e
oligárquicos para a democracia, o povo jamais teve de fato o protagonismo que
lhe cabia.
Para
concluir, relembro que algumas vertentes religiosas tentam justificar o
sofrimento humano como sendo algo divino e hereditário e, tragicamente, podemos
afirmar que tal teoria se demonstra de forma cruel e faz com que as
desigualdades sociais sejam absurdamente aprofundadas em nossas comunidades.
Por fim,
novamente, basta analisarmos nossa sociedade neste exato momento e notar que
fatores hereditários, infelizmente, definem o futuro das pessoas. E você, que
possui ascendência europeia, pode até tentar argumentar que todas as raças são
iguais, mas será impossível sustentar que não existe um protagonismo branco
entre nós.
E, sim, isso mata!
Weber Amaral
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Binho, lindo continuação do texto sobre justiça divina. Esse protagonismo e escolha divina tem que mudar. Eu nao sabia desse investidor de elite financeira brasileira, mas nao esperava nada melhor que isso não. Seus textos são reconfortantes pra mim, pois leio todos eles e fico feliz de conhecer pessoas como você
ResponderExcluirUia.. adorei o "texto reconfortante". .. tinha a percepção que pessoas acham meu conteúdo meio pertubante. hehe..
ExcluirRealmente, esta interpreção que pessoas tem de como é o mundo precisa mudar. Mas, isso passa pela nossa própria conscientização também. Creio que a medida que nos educamos e passamos o canhecimento pra frente, as coisas tendem a melhor.. (espero)
Valeu Gandhi... abraços.
Se até Gandhi esta concordando com vc, quem sou eu para discordar.
ResponderExcluirhahaha.. viva à diversidade presente nos comentários né.. de raça, de crença e de etnias..
ExcluirAbraços.