O super coitado de Sevilha
Em 2006, após concluir todas as matérias na faculdade, eu tomei uma decisão que transformaria toda a minha vida: fazer um intercâmbio na Espanha. Mudei-me, então, para Sevilha, que é localizada no sul da península ibérica e que também é a quarta maior cidade do país. Matriculei-me em algumas matérias na Escuela Superior de Ingeniería Informática e estudei ali durante o primeiro semestre do ano. Após alguns meses de procura, também fui admitido em um programa de estágio na fábrica de caixas de câmbios da Renault naquela mesma cidade, o que extendeu minha estadia na Europa por mais seis meses.
Aquele ano
de 2006 foi, sem sombra de dúvidas, um dos melhores momentos que eu vivera até
então. Além da faculdade e do estágio, também trabalhei como garçom em um
bar-restaurante em uma região bem turística de Sevilha e fiz inúmeras amizades,
muitas delas que perduram até hoje.
Além das grandes experiências
profissionais, culturais e de vida, Sevilha ganhou um espaço gigantesco no meu
coração, tanto que me arrisco a dizer que ela é, para mim, a segunda cidade
mais linda que existe no mundo (logicamente, atrás de Cornélio Procópio). A
vida boêmia, as vielas apertadas, a população acolhedora e simpática, o clima
caloroso (às vezes um pouco demais) e a riquíssima história da cidade fazem
qualquer um perder as palavras ao descrever Sevilha.
Enfim, toda vez que falo sobre esse
período da minha vida, algo de muito empoderador e um sentimento de satisfação
enorme surgem dentro de mim, pois essa experiência me libertou de muitas
amarras e também abriu os meus olhos para aquilo que eu simplesmente julgava
exótico e tão distante da minha realidade - vale aqui uma referência ao texto Predestinados
ao inferno.
Em 2014, já durante a minha carreira
profissional, fui convidado a executar um projeto de um pouco mais de mês de
duração em Lisboa. Apesar de querer muito conhecer diferentes cidades de
Portugal nas quais ainda não havia estado, não hesitei em dirigir (quando ainda
podia) por mais de cinco horas para passar um final de semana em Sevilha. Foi
meu regresso triunfante àquela cidade que havia me dado as melhores
experiências da minha vida até então. Foi totalmente realizador.
Contudo, faltava apresentar Sevilha
à pessoa com a qual eu passo 100% do meu tempo: a Marida. E foi que, em maio de
2019, juntamos umas economias e fomos passear na Espanha; e nossa rota,
obrigatoriamente, incluiu três dias na cidade.
Eu estava muito feliz naqueles dias. Com o entusiasmo com o qual uma criança mostra o desenho rabiscado no papel para a sua mãe, eu levei a Marida para o lugar onde eu morara, o bar no qual costumava tomar café da manhã, o restaurante onde trabalhei, o ponto no qual eu pegava o ônibus, a faculdade onde estudei e tudo mais. Também fiz questão de visitar todos os pontos turísticos com ela, tais como a Plaza de España (local preferido de quase todos que visitam a cidade), os Jardines del Murillo, os Reales Alcazares, a Feria de Sevilla, entre outros. Além disso, também fizemos uma longa e agradável caminhada pela margem do Rio Gualdaquivir, passando pela Torre del Oro até a Puente de Triana. Para completar, obviamente visitamos o cartão postal da cidade, a Giralda - um dos maiores templos cristãos do mundo e que simboliza muito bem o choque de civilizações presente no sul da Espanha.
No domingo a tarde, caminhávamos em direção à Plaza de la Encarnación, onde está localizada a Setas de Sevilla, uma moderna e gigantesca estrutura de madeira em formato de pérgola que contrasta de forma única com o centro histórico e milenar da cidade. Ali, naquele trajeto, algo aconteceu.
Comecei a ouvir uma música enquanto
caminhávamos pela Calle Sierpes, um lugar que eu amava frequentar, pois
era uma rua bem movimentada, repleta de bares e restaurantes e que nos dava
acesso a vários monumentos e pontos importantes do centro de Sevilha. Logo
pensei que se tratava de um artista de rua. Fomos nos aproximando e vi que era
um senhor que tocava seu violão e cantava uma bela canção típica espanhola (ao
estilo Paco de Lucía). Fiquei animado, pois, apesar do gênero melancólico da
canção, ela me trazia uma linda nostalgia. Quando me acerquei mais ainda vi que
o senhor estava mal vestido, tinha um semblante muito triste, pouquíssimas
moedas em sua caixinha de coletas e... era cego.
Eu não consegui esconder a minha
frustração e tristeza naquele momento. Fiquei somente parado, olhando aquele
senhor. A Marida notou a minha súbita mudança de humor e tentou, em vão, me
animar. Após uns segundos contemplando aquele senhor com semblante triste e que
cantava aquela música melancólica, resolvi seguir o meu caminho. Entramos na
igreja de San Fernando, que possui uma belíssima arquitetura em seu
interior, porém, meu pensamento não se desconectou daquele senhor pelo resto da
viagem.
Você, leitor mais atento, deve ter
notado que, no início do texto
anterior, eu enfatizei que o cego que Jesus
e seus discípulos encontraram na passagem bíblica de João 9 estava parado a
mendigar. Pois bem, agora é o momento de usarmos tal informação.
Infelizmente, a visão geral da
sociedade é que o deficiente é alguém incapaz e extremamente limitado. Tal
preconceito leva pessoas com deficiência à marginalização, ou seja, que estejam
à margem da civilização humana. Como exemplo dessa visão deturpada (e
histórica), temos o mendigo bíblico de João 9.
Por outro lado, o preconceito também
gera uma percepção mística (e heróica) sobre o deficiente. Isto é, a sociedade
vê todo o seu trabalho como algo extraordinário e acaba colocando aquele
indivíduo em um patamar muito elevado. Para melhor elucidar isso, pense nos
vários artistas, cientistas, políticos e outros profissionais de sucesso que
possuem alguma deficiência.
Portanto, a sociedade acaba
dividindo os deficientes em duas categorias: O coitado e o super-herói.
O
super-herói seria a pessoa que é bem sucedida em sua carreira profissional, que
possui uma família e amigos e, o mais importante, faz isso tudo apesar de sua
deficiência. Na contra-mão, o coitado seria aquele que “infelizmente” possui um
azar (ou maldição, na visão religiosa fundamentalista) muito grande e, que por
ser deficiente, não possui condições de alcançar nada na sua vida.
Você pode
querer argumentar que essa visão dualista é, na verdade, um reflexo de como a
nossa sociedade vê qualquer cidadão, ou seja, que tendemos a dividir o mundo
entre vencedores e fracassados, ricos e pobres, bons e maus, etc; e não vou
aqui tirar a sua razão, pois concordo que essa visão polarizada do mundo está
presente em todos os setores. Contudo, quando somamos essa visão equivocada da
vida com o capacitismo, a balança pesa com muito mais crueldade para o lado do
deficiente.
Ao
contemplar o cego de Sevilha eu, logicamente, me identifiquei e fui tomado
também por essa visão dualista. Comecei a pensar em tudo que ele deve ter
passado em sua vida, ou seja, será que sua deficiência lhe afastou de uma
educação digna? Teria ele uma família? E amigos? Como ele se locomove por aqui?
Bem, essas são perguntas que eu nunca poderei responder, já que resolvi seguir
o meu caminho naquela tarde.
Mas, após o
ocorrido, eu comecei a enumerar a quantidade de artistas que
encontrávamos pelas ruas da Espanha; notei, pois, que eram muitos e que suas
condições não eram muito diferentes do senhor que eu contemplara na Calle
Sierpes. Ou seja, a despeito da sua deficiência, ele não estava em um
patamar acima ou abaixo dos demais malabaristas, estátuas vivas, mágicos e cantores
que encontramos por aí. Portanto, questões sociais podem sim pesar mais para
deficientes (e eu vou sempre militar para o contrário), mas elas extrapolam
esses limites e chegam a todos os segmentos da nossa sociedade.
Do outro
lado do espectro do “coitadismo”, é lindo assistir uma ópera cantada por Andrea
Bocelli, ou rir das maravilhosas piadas de Geraldo Magela (adoro). Contudo,
achar que essas pessoas são super-heróis simplesmente porque são deficientes é
extremamente preconceituoso. Ou você acha que, a despeito da Esclerose Lateral
Amiotrófica, Stephen Hawking não seria o gênio que foi? Ou então, você não
acredita que Clodoaldo Silva pudesse sim ser o maior nadador brasileiro de
todos os tempos?
Ou seja, o que faz pessoas serem
extraordinárias são as suas habilidades e conquistas, não as suas limitações.
Existem muitos outros pontos que
quero abordar dentro deste tema, como por exemplo, a forma de acesso a
oportunidades para indivíduos com deficiência dentro da nossa sociedade.
Contudo, por hora é importante sempre reforçar o ideal trazida como essência
deste texto, ou seja, que não existem coitados e super-heróis, mas, que ao
contrário disso, somos todos seres humanos, com nossos medos, nossas lutas
diárias, nossos receios, nossas frustrações, nossas habilidades e sempre em
busca das nossas vitórias.
Weber Amaral
- Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.
"Y es por eso que hoy vengo a verte
ResponderExcluirSevillista seré hasta la muerte
La Giralda presume orgullosa
De ver al Sevilla en el Sánchez Pizjuan"
Binho, espero as suas crônicas como quem espera o capitulo novo de um grande livro.
ResponderExcluirValeu Gandhi. Eu vou tentar ser mais regular... mas é que tanta coisa acontecendo ultimamente que tem sido dificil manter uma boa frequencia. Mas vou melhorar.
ExcluirAbraços.
Muito bom, Binho! Parabéns e obrigado! Bjo pra vc(s)!
ResponderExcluirValeu Giu.... vc é parte das amizades sevilhanas que perduam até hoje. Obrigado pelo carinho e pela companhia (tanto em 2006 quanto a que dura até hoje).
ExcluirAbraços.
Ae Sevilla! Um dia a conhecerei! Belo texto como sempre. Abraços
ResponderExcluirSevilla.. capital de Andalucia. Abraços mano.. valeu pelo apoio.
ExcluirAbraços.
Nossa Bimho que texto 👏🏼👏🏼👏🏼. Concordo com cada palavra.
ResponderExcluirOlá.. muito obrigado por ler as besteiras q eu coloco aqui :-p.
ExcluirAbraços.
Muito bom conhecer um pouco de Sevilha e entender essa questão de rótulos extremos que infelizmente existe. Esperando ansiosamente pelos próximos posts que vão abordar as oportunidades! Grande abraço mano
ResponderExcluirFala Mano
ExcluirValeu pelo apoio. De fato nada extremo é legal né... temos isso claro na visão político-partidária hoje em dia, mas, se olhamos bem, vemos isso em tudo que é lugar.. até nos nossos próprios preconceitos.
Sim, virão novos textos sobre coisas que ainda precisamos discutir ..
Abraços.
Emocionante! Parabéns primo!
ResponderExcluirQue bom que se emocionou... acho muito importante tratar assuntos delicados com racionalidade, mas somos seres de alta carga emocional e também representamos a soma de todos esses sentimentos.. uia, acabei de ter uma ideia sobre outro texto.. hehe
ExcluirBeijos prima.
Muito legal como comecei a ler o texto sem esperar pela reflexão que viria, quase que como uma reviravolta! (Rs) Adorei o texto e a reflexão que trás.
ResponderExcluirhahahaha.. reviravolta de novela mexicana né... ou, novela espanhola, neste caso. Abraços e obrigado, de coração, por ler..
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