O motorista impostor

 Quando eu estava para completar 18 anos, assim como muitos de vocês, uma das minhas grandes aspirações era, sem sombra de dúvidas, tirar a minha carteira de motorista. Anos antes disso, porém, a legislação brasileira havia mudado e, diferentemente dos meus dois irmãos, eu teria que passar por todo o processo recém criado, o qual incluía aulas compulsórias em autoescola, exame psicotécnico e as provas escrita e prática.



            De forma alguma me preocupei com a prova técnica, e tampouco achei que o psicotécnico seria um problema. Nem a temida prova de direção pelas ruas de Cornélio Procópio me deixou muito nervoso, afinal eu achava que poderia me sair bem em tudo. Contudo, o que mais me aterrorizava era um teste obrigatório e que todos tinham a aprovação como algo garantido, tanto que ele nem sequer era citado nas aulas da autoescola - sim, estou falando do exame de visão.

            Lembro-me que entrei na sala do Departamenbto de Trânsito (Detran) suando frio e tentando me concentrar para “enxergar bem”, como se isso fosse possível. Para tanto, eu tentava não forçar minha vista e ficar relaxado. Quando coloquei meus olhos naquele equipamento usado pelo médico, eu consegui ver, com um certo esforço, as letras embaralhadas em meio àquelas figuras coloridas. Felizmente, após esse pequeno sofrimento, o médico me deu a aprovação.

            Saí dali com uma grande satisfação estampada no meu rosto, mas logo me dei conta que eu deveria ter que passar por aquilo até o fim da vida para manter a minha habilitação ativa. E assim foi, a cada três anos lá estava eu novamente no Detran, suando frio e tentando me concentrar para renovar o meu documento.

Dessa forma eu ia passando pelos exames, mas sempre com um sentimento penoso e aparentando estar escondendo algo - e realmente estava, pois sempre tentava disfarçar a minha baixa visão. Em algumas vezes, o médico se compadecia e demonstrava uma enorme paciência, que eu mesmo não sei se teria. Porém, obviamente, eu nunca consegui pegar o prazo máximo de renovação, ou seja, teria que voltar ali pouco tempo depois.

Obs: Aqui vale ressaltar que todas as vezes que fui aprovado nesses exames, eu, de fato, preenchia os requisitos mínimos de visão - ou seja, nunca “fui passado”.

            Em 2015, quando eu me mudei para os Estados Unidos, a situação virou totalmente, pois o sistema era todo novo e eu deveria ter que fazer uma nova habilitação aqui no norte. Por já possuir habilitação no Brasil e também por ter mais de 25 anos, eu somente deveria que passar por três processos: Prova teórica, que consiste em um teste com 30 questões, o exame prático, o qual é feito com o seu próprio automóvel e consiste, basicamente, em dirigir com um avaliador por uns 15 minutos e, obviamente, o teste de visão.

            Estudei para a prova teórica e fui ao departamento governamental aqui do Texas para fazer a documentação. Eu havia previamente estudado por alguns dias, ou seja, a prova teórica não representou um problema. Contudo, minutos após essa boa notícia, fui levado ao exame de vista e, para a minha grande frustração, fui reprovado. 

            Apesar de ter uma relativa boa visão no olho esquerdo, eu havia, recentemente, perdido totalmente o direito, fato este que causou a minha reprovação. Tive, então, que conseguir liberação médica, o que incluiu declarações, laudos e formulários para que eu pudesse, portanto, ter a minha habilitação aprovada.

            Após isso, eu passei por algumas renovações, nas quais eu sempre havia de submeter a mesma documentação médica para seguir mantendo o meu status de motorista. Porém, conforme contei no texto Do Tetris ao Super Bowl, em 2019, eu resolvi que não achava mais conveniente dirigir, vendi meu carro e passei a ser, exclusivamente, um passageiro. Dessa forma, eu manteria a minha habilitação unicamente como um documento de identificação na minha carteira.

            Entretanto, diferentemente do Brasil, os documentos de motoristas aqui possuem o endereço impresso em si, o que é muito bom pelo fato de a sua identificação também servir como comprovante de residência. Em contrapartida, sempre que há mudança de endereço, você deve se direcionar novamente ao departamento de trânsito e renovar a sua licença.

            Bem, como a Marida e eu nos mudamos há alguns meses para a nossa nova casa, deveríamos então ter que passar pelo processo citado acima. Ela, toda destemida, agendou seu horário e tranquilamente recebeu seu novo documento pelo correio após alguns dias. Eu, por outro lado, enrolei um pouco mais, até que também resolvi fazer o meu agendamento.

            E foi que, em uma manhã ensolarada de sábado, fomos à repartição pública para a minha renovação. Chegamos, conforme solicitado, 30 minutos antes do horário marcado, passamos pelos procedimentos de segurança relativos à Covid-19 (questionário e medição de temperatura) e logo entramos no prédio 

Estávamos Marida, eu e a Severina.

Pausa aqui para apresentar-lhes a Severina.

 


Dessa vez, portanto, eu não quis esconder nem disfarçar nada. Ao contrário, estava muito bem sinalizada a minha situação. Todos os funcionários ali foram extremamente simpáticos comigo e resolveram meu caso com uma grande eficiência. Contudo, logicamente, eu não possuo mais um carteira de motorista e, sim, um documento de identificação expedido pelo Estado do Texas.

Apesar de, mais uma vez, ter que abdicar de algo na minha vida devido, única e exclusivamente, à minha visão, o fato de não ter que passar por constrangimentos, ou de ter que eternamente me sentir um infiltrado ou até mesmo um impostor é algo impagável.

Dessa forma, a vida segue, com as suas novas realidades, restrições, conquistas e abdicações.

 

Weber Amaral


Nota: Eu, posteriormente, me dei conta que deveria ter levado comigo a Filomena, ao invés da Severina, ao departamento de trânsito. Mas, vou falar melhor sobre isso em um outro texto, no qual pretendo dissertar sobre o treinamento de orientação e mobilidade que estou fazendo atualmente.


  • Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.

Comentários

  1. Tio Binho, por favor, no texto sobre orientacao e mobilidade voce poderia nos explicar tambem o motivo pela escolha dos nomes (Filomena e Severina)? Obrigado! Abraco

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    1. Vixi.. agora vou ter q inventar uma mega explicação bem fundamentada.. hahaha
      zueira.. mas tem motivo sim.
      Abraços.

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  2. Binho... é a Marilu. Algum sacizinho mudou meu nome para o nickname dislexiavisuslnet... só pra vc saber quem é essa figura que é sua fã e está mandando msgs. Beijo

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    1. Fico muito feliz que tenhas lido meus textos e que se dispos a comentar. grato sempre beijos

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