Tudo posso... posso?
Assim como já contei por aqui, há
aproximadamente 15 anos eu entrava, pela primeira vez em um avião, tendo como
destino a Espanha. Ali, eu faria um intercâmbio de um semestre na Universidade
de Sevilha e, além dos estudos, o meu maior objetivo na Europa era o de fazer
um estágio acadêmico, o qual, na minha concepção, poderia ser um grande salto
na minha futura carreira profissional.
Como
havia um convênio entre as universidades, a instituição espanhola não me cobrou
pelos estudos, mas, eu deveria arcar com todos os demais custos do intercâmbio;
mesmo porque, naquela época o programa Ciência sem Fronteiras ainda não existia
(não que ele ainda exista hoje). Por isso, eu vendi algumas coisas que possuía
e contei com ajuda da família para levantar o dinheiro para o voo, estadia e
outras despesas daquele período.
No
entanto, como era de se esperar, o dinheiro que eu levara comigo não foi
suficiente para todo o tempo que eu planejava ficar por lá - lembrando que,
inicialmente, seriam seis meses, mas eu planejava estender para um ano assim
que eu arrumasse um estágio. Após sofrer por 15 dias em uma árdua busca, eu
consegui enfim encontrar um apartamento bom e relativamente barato para viver.
Os gastos, porém, continuavam; ou seja, transporte público, alimentação,
material de estudos e outras despesas seguiam drenando minhas economias. Ao
final do quarto mês, então, eu lembro-me de estar mergulhado em uma situação
muito desafiadora: morar em um país que não era o meu, com 20 anos de idade, 50
euros na carteira e uma dívida de 115 para o meu grande amigo Michele - um
italiano que voltará, certamente, a aparecer por aqui em outros textos.
Apesar
de eu ter grandes histórias para contar, a minha intenção neste texto não é
falar sobre Espanha e nem sobre esse período incrível da minha vida, mas sim,
quero explorar exatamente o sentimento que tive ao chegar nesse momento crucial
descrito no parágrafo anterior. Ou seja, o que eu, pouco experiente e nada
maduro, fiz diante daquela inconveniente situação?
Ora,
não sei exatamente o motivo, mas eu sempre tive muita esperança de que, de um
modo ou de outro, tudo ia dar certo. Eu tinha sim muita fé religiosa, porém,
acima de tudo, eu acreditava muito em mim, isto é, que eu poderia solucionar
aquela situação. Achava que, não importa o que acontecesse, eu daria um jeito
naquilo tudo.
Para
encurtar a história, após fazer muitas entrevistas e receber muitos “não” -
inclusive, até passei por uma situação na qual o recrutador disse que havia
gostado bastante de mim, mas que não me contrataria simplesmente por eu não ser
espanhol - naquela mesma semana de extremo aperto, eu consegui um estágio em
uma grande empresa automotiva em Sevilha. Com este dinheiro eu poderia, ao
menos, pagar a minha dívida para o Michele e garantir o aluguel dos próximos
meses.
A
situação, porém, ainda não estava resolvida, pois não adiantava eu somente
pagar o aluguel e não ter dinheiro para as demais despesas. Portanto, assim que
comecei o estágio e as aulas terminaram, comecei a buscar um segundo emprego em
bares, hotéis, restaurantes ou quaisquer lugares que eu pudesse fazer um
dinheiro extra. Novamente ouvi várias negações, até que comecei a trabalhar no
bar Carmela, o qual me pagava ao fim de cada dia trabalhado. Ou seja, além de
excelentes amigos e grandes histórias para contar, esse dinheiro me garantiu um
segundo semestre bem mais confortável.
Eu
já me dei conta que os textos que tendem a ter a melhor aceitação aqui no
Dislexia Visual são exatamente aqueles nos quais eu demonstro este espírito de
superação. Mas, para já estragar o que vem pela frente, por mais que pareça,
este texto aqui não será mais um desses.
Eu
comecei este texto juntamente com uma história de superação, a qual eu sempre
me orgulho muito ao contar a qualquer pessoa que se sente comigo em uma mesa de
bar ou algo parecido. Pois é, assim como você, eu adoro ostentar o quão
difíceis são meus dias e como eu, apesar dos pesares, consigo superar todos os
meus desafios. Afinal, como eu já disse acima, este pensamento pós-moderno
sempre esteve presente em mim.
Porém,
- e agora começa a parte realista deste texto - , a vida não é sempre assim. Ao
contrário, nós todos estamos inundados de frustrações, decepções e fracassos
pessoais por todos os lados. Estas desventuras são o que nos dão sempre um
choque de realidade e que desmentem toda essa falsa teoria de meritocracia
moderna.
Você
pode estar, neste exato momento, querendo contra-argumentar usando o meu
próprio exemplo, seja o citado acima ou o fato de eu, um deficiente visual,
tenho a clareza de criar este blog ou outros aspectos da minha vida que as
pessoas ao meu redor conhecem. Entretanto, nem tudo que se passa comigo é
perceptível a todos.
Quanto
mais a minha visão foi se degradando, mais eu me dava conta que nem tudo era
possível, alcançável ou factível. E eu já trouxe inúmeros exemplos por aqui. Já
contei como foi difícil entregar a minha carteira de motorista e declarar que
não posso mais dirigir, ou ainda que não pratico mais futebol ou quaisquer
outros esportes coletivos. Mas, além de tudo isso, só eu sei as dificuldades do
dia a dia, ou seja, o quanto é penoso medir o nível de água para fazer o café
pela manhã, ou ainda, a gigante frustração da mão queimada ao tentar fritar um
ovo, ou as canelas cheias de hematomas de tanto me chocar com obstáculos no meu
caminho.
Não,
nem tudo é possível!
Logicamente,
eu não estou querendo dizer que, não fosse a deficiência, tudo me seria
facilmente alcançável. Mas sim, que talvez este tenha sido, para mim, o ponto
de início da desconstrução da ideia de que a vida não passa de um simples “Vai
que você consegue!”. Ao contrário disso tudo, essa falsa noção de superação e
conquista é, na realidade, algo enraizado em nós desde sempre e, certamente,
também representa uma forma obscura de controle social.
Weber Amaral
- Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.
Eita Binho! Vc é P. H. O. D. A.!
ResponderExcluirTexto pesado porém necessário.
Parabéns Guerreiro!
Valeu Giu
ExcluirFico feliz q a mensagem aparentemente tenha chegado.. valeu
Sei que vc deve ter ficado chateado por eu não ter citado o Catalina.. mas tá tudo na família né? :-/
Abraços.
Fala Binho! Ótimo texto (como sempre) e gostei principalmente por você tocar no assunto da falsa noção de que todos podemos alcançar tudo na vida, basta querermos. Texto provocativo e bom pra debater em uma mesa de bar (pós-pandemia)
ResponderExcluirPois é.. e a maior prova que nem tudo é possível é que a gnt nem pode ir pra um bar beber cerveja e conversar sobre as tretas da vida...
ExcluirAbraços mano.. e ja já a gente joga um papo de alto nível fora por aí.
Dificuldades nos impulsionam, ou pelo menos, deveriam nos impulsionar. AMO VC. Não podemos tudo, mas nem seria legal poder tb. kkkkkj
ResponderExcluirFala Gui. Mas também importante saber para onde estamos sendo impulsonados. Nem todo caminho é para nós. Achar o nosso proprio caminho é, certamente, o mais importante.
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Super Binho! Como me lembro bem da sua ida à Espanha, viagens com seu amigo italiano, ida ao Marrocos. Foi um orgulho te ouvir falar das peripécias, quando voltou do intercâmbio. Vc é um exemplo de superação que dou aos meus alunos.
ResponderExcluirSei do orgulho que a Marlene tem de vc. Eu tbm tenho!!!
Abraço da Marilu
eu que tenho orgulho dos meus mestres e falo sempre da loira mais inteligente do mundo por onde vou. Beijos Marilu e obrigado mais um vez
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