A meritocracia dos homônimos

Eu sempre gostei muito, desde criança, de praticar futebol, mas devo confessar que, caso você jamais tenha me visto em ação, eu sempre fui bem mediano. Dos meus 8 aos 18 anos, mais ou menos, eu disputei vários campeonatos escolares, ligas municipais e até algumas regionais. Nunca brilhei, mas sempre me diverti bastante e, até um certo ponto, jogava em um nível competitivo. No meu time existiam todos os tipos de jogadores: havia os habilidosos, como o João Paulo (Nico), os velozes, como o Weslinho (meu primo), os sérios e engajados, como o Baiano (deus da raça), os aplicados, como o Gui, e os constantes e decisivos, como o Thiago Bodão. 

No entanto, de todos eles, o Nilmar sempre foi o jogador mais completo, pois combinava todas as características acima no seu estilo determinado e elegante dentro das quatro linhas. Lembro-me o quão seguro era tê-lo no meu time, já que ele tomava conta da partida e sempre as decidia. Porém, também me recordo o quão aterrorizante era enfrentá-lo durante os treinos ou nos torneios internos que disputávamos. Enfim, Nilmar é, com certeza, o melhor jogador de futebol com o qual eu já dividi a quadra ou o campo. Por isso, sempre acreditei que se um dia eu tivesse um amigo profissional, esse seria, sem sombra de dúvidas, o Nilmar.

Por volta, então, dos nossos 15 anos, Nilmar resolveu (acertadamente) investir em sua carreira futebolística, e logo ingressou no saudoso União Bandeirantes, time profissional da cidade vizinha e famoso por ser um celeiro de craques. Assim que ele entrou no time, conheceu um rapaz franzino, da mesma idade e que, curiosamente, tinha o mesmo nome que ele (convenhamos que Nilmar não é o nome mais comum do mundo). Logo, a pequena cidade já ficou toda alvoroçada ao saber dos xarás que jogavam nas categorias de base do União. 

Além do nome e da idade, os Nilmares tinham uma outra semelhança: ambos jogavam muita bola. Mas, a falta de vigor físico fez o Nilmar (o outro) ser realocado para um time de uma outra cidade vizinha.

O nosso Nilmar, porém, seguia no União Bandeirantes e, em um jogo do juvenil contra o Nacional de Rolândia ele, que já atuava como zagueiro, pegou a bola no campo defensivo e depois de alguns dribles e passes marcou aquele que ele julga ser o gol mais bonito de sua carreira. O União venceu por 6 a 0 e a torcida foi delírio. Além disso, a garotada toda celebrou com muita empolgação após o jogo.

Mas, o que o Nilmar não sabia é que da arquibancada um olheiro do São Paulo Futebol Clube assistia admirado à partida. Por isso, o convite logo veio e Nilmar desembarcou na capital paulista como o mais novo contratado das juniores do SPFC.

Um pouco mais tarde, naquele mesmo ano, o destino também sorriu para o xará do nosso amigo, e ele também recebeu um convite para defender o Internacional de Porto Alegre.

 


Bem, certamente você conhece o desfecho da história do Nilmar do Inter, pois além do time gaúcho, você o assistiu jogando pelo Corinthians, Villareal da Espanha e também pela Seleção Brasileira. Mas, e o nosso Nilmar?

 

Conforme já contei, ele foi jogar pelo tricolor paulista e, devido ao seu grande talento, logo conseguiu seu espaço dentro do time das categorias de base. Ele, então, despertou a atenção de todos com o seu estilo requintado de conduzir o time da defesa para o ataque. Diziam que ele era um zagueiro forte e habilidoso, daqueles que se tornam tanto o porto seguro da retaguarda quanto também a base sustentadora da parte ofensiva da esquadra.

Tudo ia bem, Nilmar estava ansioso para jogar a sua primeira Taça São Paulo, o principal campeonato de juniores do Brasil. 

Porém, durante os treinamentos de preparação para o campeonato, Nilmar começou a sentir fortes dores em um dos seus joelhos. Ele resolveu, então, procurar o setor médico do SPFC e começar o trabalho fisioterápico para sanar suas terríveis dores. Mas, elas não passaram e, infelizmente, ele foi cortado da Taça São Paulo. 

Após alguns meses de intenso treinamento e sem conseguir retomar a sua boa condição física, ele resolveu tentar a sorte em outros lugares. Ele, então, passou um curto período de tempo no Corinthians e, logo depois, aceitou um convite para defender o Grêmio de Futebol Portoalegrense. Mas, o joelho não lhe deu trégua e as dores se tornaram ainda mais insuportáveis, o que o forçou a, temporariamente, abandonar o futebol.

Ele ainda tentou voltar a atuar por times menores do interior do Paraná, São Paulo e Minas Gerais, mas, as dores eram insanas e jogar em nível profissional era totalmente impossível.

E dessa forma, a sua carreira acabou, mesmo antes de começar.

 

Para desdramatizar a história, está tudo bem com o Nilmar hoje em dia. Ele teve bastante suporte familiar, conseguiu concluir seus estudos, é um sujeito muito trabalhador e construiu uma linda e abençoada família. Ou seja, ele é sim um vitorioso na vida, pois certamente você já ouviu vários casos similares ao dele que não tiveram um bom final. Felizmente, não vou contar tragédias hoje.

 

Entretanto, um pensamento me vem à mente quando comparo as histórias de dois meninos homônimos que sonhavam juntos com o mesmo destino, mas que acabaram com desfechos tão distintos: Será que cada um teve o que mereceu? Será que o talento os levou onde poderia levar e nada mais? 

Eu, pessoalmente, acredito que não.

Como disse, Nilmar (o nosso amigo) além do enorme talento, também se esforçou ao limite para alcançar seus objetivos. Ralou muito, assumiu os riscos necessários, mudou-se para a cidade grande, saiu da sua zona de conforto, acordou cedo, trabalhou muito e cumpriu todos os passos que qualquer best seller de auto ajuda nos recomenda fazer para atingirmos o sucesso. 

Mas, para ele, a promessa não se cumpriu. 

E não! Não foi por falta de mérito.

 

Eu não sei como você classificaria isso: se é “sorte”, “destino”, “vontade divina” ou qualquer outro termo técnico-filosófico, mas a realidade é que sempre há fatores que não estão ao nosso alcance quando o assunto é a realização dos nossos objetivos.

 

Bem, esse pensamento parece ser bem óbvio. Não é?

Sim! Mas não é bem o que se ouve por aí dentro dos setores mais tradicionais e conservadores da nossa sociedade, a qual insiste em pregar a meritocracia como a única regente determinante para a prosperidade pessoal. Ou seja, ao extrapolarmos o exemplo dos homônimos de Bandeirantes, podemos chegar a situações muito comuns à nossa volta. Refiro-me aqui à nossa sociedade doente, que brilha os olhos ao ver discursos de ricos e abastados pregando que o sucesso vem puramente do esforço individual, mas que vira totalmente as costas para aqueles que clamam por igualdade de oportunidades.

 

Veja bem, eu sei que você ralou muito na vida para chegar onde você está hoje. Penso nas noites que você virou acordado para entregar aquele projeto – meu objetivo com este texto não é desmerecer o suor do seu trabalho e nem a sua competência. Mas, apesar de tudo isso, você já parou para pensar em toda a sorte que você teve na vida? Refiro-me a coisas que lhe foram dadas sem o seu menor esforço. Pense em todo o privilégio de ter nascido no lugar e na família na qual você nasceu, com a saúde que você tem, e todo o acesso à informação e bens – entre outras coisas.

É muito fácil bradar aos quatro cantos que o seu sucesso é fruto única e exclusivamente da sua própria competência quando já se nasce numa família que sempre lhe deu tudo do bom e do melhor, que não te obrigou a trabalhar durante a infância para ajudar a pôr comida na mesa, mas, que ao contrário de tudo isso, teve condições de te pagar aulas de natação e de karatê. Da mesma forma, é super conveniente defender a meritocracia quando você tem uma saúde de ferro, ou seja, não possui nenhuma doença rara e degenerativa, ou um joelho estourado no momento mais crítico e decisivo da sua carreira.

 

Sim, todos temos sorte ou azar na vida. Isso é normal. Mas, aparentemente, essa balança não é bem nivelada, e incomoda-me profundamente constatar que os sortudos não percebem o peso dos seus próprios privilégios.

 

Weber Amaral


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Comentários

  1. Obg meu amigo por essas linhas escritas......pra mim uma homenagem....para outros talvez só mais uma história.... porém real...e verdadeira....quero que fique aqui registrado minha felicidade e de toda minha família por isso...e principalmente de saber que a distância e os caminhos da vida não apagam boas e verdadeiras amizades como a nossa e de todo nosso grupo de futsal de adolescentes da época....fica aqui minha eterna gratidão.

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    1. Valeu meu amigo...
      Como conversamos, mais do que simplesmente contadas, as histórias nos ensinam importantes lições que podemos e devemos compartilhar. E eu acho que a sua nos ensina a buscar os nossos sonhos e encarar a vida com humildade e aproveitando cada dia da nossa jornada..... valeu por tudo e um grande abraço pra toda a família.

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  2. Bravíssimo pelo texto! Mesmo na diversidade, temos sorte por reconhecer que somos extremamente felizes e abençoados por cada vitória! A vida é uma sucessão de acontecimentos e temos que valorizar as pequenas e as grandes conquistas! É sorte? É Deus? É tudo minha gente! Um abraço Binho!

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    1. aeeeee.. Muito obrigado
      Acho importante você ressaltar que a vida é uma sucessão de acntecimentos. E nós nada mais somos do que o resultado desses encontros e desencontros da vida.
      Acho que ninguém é feliz ou triste. Nós simples somos....
      Abraços.

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