Entre o lixo e as flores
Era uma quinta-feira de junho (começo do verão) aqui no Texas e eu terminava de me arrumar para sair com o meu amigo Eri para tomar um suco e jogar um papo fora. Quando estava procurando relógio, máscara e carteira, ouvi que o caminhão do lixo estava passando e resolvi colocar, antes de sair, a lata para dentro da nossa garagem, onde ela normalmente fica. Desci as escadas com o habitual cuidado de quem não enxerga quase nada, sentei-me no banco próximo à porta e calcei os tênis. Abri o portão da garagem e fui saindo, mas logo percebi que, apesar de já estarmos próximos dás sete horas, o sol brilhava ostensivamente. Pensei que deveria entrar novamente e pegar os óculos escuros e a filomena para a minha pequena tarefa, mas logo achei que não valeria a pena, pois a caminhada não seria de mais do que cinco metros. Coloquei os olhos fixos no chão da calçada e fui caminhando com muito cuidado em direção à rua. Passei por uma vaga de estacionamento que fica bem de frente com a minha casa e senti as pedras do local através da sola do meu pé. Muito vagarosamente eu cheguei na borda entre a calçada e a rua e fui então andando por ali por mais uns dois metros para chegar a um pequeno jardim que fica bem de frente com a porta principal da minha casa e onde nós e os demais vizinhos colocamos as latas para a coleta semanal. Como por aqui todos esses contêineres são padronizados, a Marida teve uma brilhante ideia de comprarmos um spray de tinta bem reluzente e pintarmos em letras garrafais o nosso número da casa, e isso certamente me ajuda muito para a tarefa em questão.
Ao chegar à primeira lata, t
entei achar a gigante letra pintada nela, mas não a encontrei. Fui, então, para a segunda e tampouco a identifiquei. Fui para a terceira, e depois a quarta, quinta e nada! Comecei a ficar um pouco nervoso por ficar perdido na frente da minha própria casa, parei e dei um respiro bem fundo. Foi quando ouvi que um carro estacionava aparentemente do outro lado da estreita rua. Um homem saiu dali de dentro e disse algo que eu não consegui entender, afinal não tinha ideia se ele estava falando comigo ou não. Ele, então chegou mais próximo e disse:
“Você precisa de alguma ajuda?”
Eu agradeci ao homem e disse que estava buscando qual era a minha lata de
lixo. Ele me perguntou como eu sabia qual era a minha e, quando eu fui lhe
responder meu pé tocou em algo que parecia uma roda de plástico. Com um esforço
descomunal eu consegui enxergar que havia uma lata tombada no pequeno jardim.
Eu então levantei o contêiner e consegui ler as letras reluzentes grifadas
nele. Agradeci ao homem e disse que eu havia enfim localizado o que eu buscava.
Ele se despediu e, com muita gentileza, desejou-me uma boa noite; voltou para o
seu carro e depois para a sua casa – para ser sincero eu não tenho certeza de
quem se tratava, mas suspeito que era um dos vizinhos que moram de frente a
mim.
Peguei a minha lata de lixo e novamente com muito cuidado, fui arrastando-a
de volta para a calçada e então para dentro da garagem. Mas quando eu passava
pela vaga de estacionamento de pedras, o carro vermelho do Eri chegou e parou
logo ali.
“Ou filhinho, tá guardando a lata de lixo é?” - disse o Eri ao sair do
carro.
“Estou sim! só vou pegar a Filomena e os óculos escuros e já vamos.”
“Show! eu te ajudo então.” - disse ele usando suas habituais gírias
sul-fluminenses.
Quando passávamos da calçada para dentro do pequeno condomínio que habito,
duas vozes nos cumprimentaram de forma calorosa. eu tentei ser também simpático
e disse “Oi” às duas pessoas. Houve um pequeno silêncio, o qual foi quebrado
com eles falando em direção ao Eri:
“Nós somos o Daniel e a Mary, vizinhos do Weber.”
O Eri também se apresentou e tivemos uma rápida conversa (o que o americano
chama de small talk). Os vizinhos foram para a sua casa e nós fomos para
um bar que ficava perto para comer um taco e conversar um pouco sobre a vida.
Depois que voltei para casa, fiquei pensando no encontro que tive com os
vizinhos e o quão rude da minha parte havia sido não os apresentar à visita
(Eri). Foi então que decidi, junto com a Marida, escrever um pequeno texto
explicando a minha situação enquanto deficiente visual e enviar a todas as
famílias que residem no nosso pequeno condomínio – Não chegamos a uma dezena de
casas ao total. Nela, fiz uma descrição superficial da minha condição e pedi
que sempre que me encontrassem que dissessem seus nomes, pois eu não os vejo
todo dia e, portanto, suas vozes não me soam tão familiares assim.
Embora eu tenha descrito em somente um parágrafo (o anterior) que eu
subitamente resolvi “abrir o jogo” para os meus vizinhos, escrever aquela
mensagem para eles não foi uma tarefa fácil. Porém, se você acompanha as
crônicas que publico por aqui, já sabe tudo o que penso sobre a necessidade e o
alívio que é para um deficiente deixar muito bem claro a todos que nos cercam
qual é a nossa real situação. Vale aqui a referência aos textos O dia que eu saí do armário e Uma barata chamada Kafka. Portanto, o que eu quero explorar aqui hoje não diz
respeito exatamente a como eu lido com a minha deficiência perante o mundo, mas
sim como o mundo lida como a minha deficiência.
Após eu ter comunicado aos meus vizinhos a minha situação, eu recebi várias
mensagens de todos eles me dando apoio e agradecendo pela minha transparência
para com eles. Um ou dois dias se passaram e, como o sol estava bem forte, eu
resolvi aguar as plantas do pequeno jardim que tenho de frente à minha casa.
Peguei a mangueira, conectei à torneira e comecei, com a habitual dificuldade,
a molhar as belas plantas que foram escolhidas a dedo pela Marida. Eu nem
sempre consigo ser preciso e certamente levo um pouco mais de tempo para
efetuar essa tarefa; bem como acontece com muitas outras atividades do meu
cotidiano, mas ao fim uso meus outros sentidos, tais como audição e tato, para
encontrar o ponto certo para o qual apontar a mangueira e ter sucesso em
concluir o que deve ser feito.
Quando eu estava já recolhendo a mangueira, um carro entrou na nossa
pequena vila e logo parou bem em frente a mim. Escutei que o vidro se abaixou e
uma mulher bem simpática me disse:
“Oi Weber, aqui é a Mary e o Daniel, tudo bem com você?”
“Tudo bem, e com vocês? Estavam passeando?” - falei eu já tentando puxar um
assunto com meus vizinhos.
“Estávamos sim, mas está muito quente lá fora, então voltamos. As suas
flores estão muito bonitas, vejo que vocês estão cuidando bem delas” – seguiu
Mary.
“Ah, obrigado!” - agradeci.
Eles se despediram e seguiram seu caminho, enquanto eu terminava de
recolher a mangueira e também entrar em casa com um sentimento muito bom dentro
de mim, afinal, o que eu havia pedido aos meus vizinhos – que se apresentassem
verbalmente quando me encontrassem – havia sido prontamente atendido pelo
Daniel e pela Mary. Além disso, não senti nenhum tipo de mudança no jeito que
falavam comigo, ou seja, seguiam sendo muito cordiais no tratamento comigo.
Aquele momento de empatia deles me deixou muito feliz e então comecei a
refletir que, apesar da vida estar sendo cada dia mais difícil e de os desafios
não me darem trégua e as frustações serem constantes, eu consigo sim contar com
pequenos atos de solidariedade que, para ser bem sincero, não custam muito, mas
que para mim fazem toda a diferença.
Obviamente é muito frustrante ficar perdido na frente da minha própria casa
buscando um gigantesco objeto verde (a lata de lixo), mas saber que existem
pessoas que se dispõem a vir até mim e oferecer alguma ajuda é realmente
comovente e encorajador. Da mesma forma, eu acho muito belo vizinhos que deixam
de lado algumas conveniências para repetidamente se apresentar a alguém que
teoricamente deveria saber quem eles são.
Antes de concluir, é bom enfatizar que eu sei que nem todas as pessoas têm
o mesmo cuidado, que existem aqueles que não conseguem ter o mínimo de empatia
com o seu próximo, mas eu, de todo o meu coração, tendo a pensar que esses são
minoria, e que nós somos sim humanos que, apesar de termos um egoísmo
intrínseco na nossa natureza, o nosso sentimento de comunidade, amor e respeito
aos nossos irmãos é brutalmente superior dentro dos nossos instintos. Portanto,
por mais que nem todos os vizinhos aqui da minha pequena vila seguem sempre o
que eu pedi, eu quero acreditar que é por pura distração e não que se tratam de
pessoas más. Também eu entendo que nem todos vão ter o mesmo cuidado nos
detalhes que o Eri teve naquele dia e que também vejo em outros amigos, seja de
parar o carro no lugar certo, oferecer ombro quando achar que assim o necessito
ou pré-anunciar o degrau que se aproxima. Afinal, tudo isso, mais do que
empatia, exige um pouco de treino e disposição daquele que está comigo.
Por fim, ao ler este e outros textos que escrevo, você certamente consegue
ter uma ideia de quão desafiador cada pequena atividade do meu dia a dia pode
ser. E isso não é culpa de ninguém, nem minha, nem sua e nem de ninguém. Por
isso, mais uma vez gostaria de agradecer a você que, com pequenos gestos e
concessões, faz a vida ser um pouco menos dura. Aliás, o simples fato de você
parar o que está fazendo e ler as minhas digressões por aqui já é um grande
demonstrativo da sua empatia e solidariedade.
Obrigado!
Weber Amaral
Muito bom o texto, tio Binho! Tamo junto!
ResponderExcluirValeu mano .. muito obrigado por tudo também .. um grande abraço
ExcluirSeus textos são ótimos, Binho! Não li todos mas chego lá rs Siga firme, abraços!
ResponderExcluirObrigado Karol, fiquei muito feliz ao ler o teu comentário aqui. Um grande abraço e tudo de bom pra você.
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