A maior realização da minha carreira
Há alguns meses, um cliente relatou um problema que lhe trazia muita inconveniência ao utilizar uma ferramenta de software desenvolvida pela Siemens. Fizemos uma reunião e definimos que eu poderia ser a pessoa responsável por verificar o que estava acontecendo e implementar uma possível correção. Mal sabia eu que isto se converteria no maior desafio de toda a minha carreira profissional. Em termos técnicos, eu teria que adicionar dois parâmetros em um documento XML e alterar o código para deixar de realizar os seus cálculos já pré-estabelecidos usando valores fixos. Por isso, aquela rotina específica, que houvera sido inicialmente desenhada com uma mescla de C#, xslt e JavaScript, deveria agora buscar os parâmetros definidos dinamicamente pelo usuário no citado arquivo XML. Chegar ao resultado esperado, porém, não foi nada fácil. Tive que contar muito com a colaboração de meus colegas e trabalhar arduarmente por longuíssimas duas semanas para conseguir apresentar a solução para o cliente. No fim tudo deu certo e pude celebrar a entrega do que julgo a maior realização de toda a minha carreira professional.
Imagino que após ler o
parágrafo anterior, algumas perguntas devam ter surgido em sua mente, portanto,
para que fique mais claro o motivo disso tudo, creio que é necessário que eu forneça
alguns detalhes sobre a minha formação profissional e vida pessoal.
Caso você não seja da
área de TI e esteja porventura se sentindo deslocado no meio da minha narrativa,
é como se um construtor experiente, que já participou do levantamento de grandiosas
obras como pontes, viadutos, túneis ou altos edifícios, de repente afirmasse
que acaba de pendurar um quadro em uma parede, e que esta é a maior realização
da sua carreira. Ainda pior é ele exclamar que, mesmo contando com a ajuda de
algumas pessoas, a moldura só esteve bem fixada após duas semanas de muito
trabalho.
Para aqueles que
acompanham este blog, a aparente contradição pode já parecer destravada,
entretanto vou tentar elucidar melhor os fatos.
Convivo, desde os seis
anos de idade, com uma doença auto-imune e degenerativa nos olhos chamada pars
planite. Apesar de eu jamais ter enxergado muito bem, minha visão pelo menos atingia,
com muita dificuldade, os requisitos mínimos durante toda a minha vida. Passei por
mais de cinquenta cirurgias para tentar postergar algo que sempre achei
inevitável no meu destino. Em 2015 perdi totalmente uma das vistas e a outra
entrou em uma fase mais acentuada de degradação três anos mais tarde. No começo
de 2021, quando completei três décadas de tratamento oftalmológico, o olho
restante piorou de tal forma que logo pude ser declarado cego. Passei então por
um período de alguns meses de afastamento do trabalho para tentar me adaptar a
um mundo novo que se abria diante de mim, a despeito de esta não ser a minha
vontade. Dediquei-me a estudar Braille e orientação e mobilidade, téccnica esta
que tem me ensinado a caminhar com minhas bengalas Filomena e Severina. Além
disso, mergulhei a fundo no estudo de tecnologias assistivas, e como eu poderia
ser novamente produtivo na minha profissão, por mais que este conceito tenha
tomado um novo significado para mim, discussão esta muito abordada aqui neste
blog.
Quando retornei ao
trabalho, eu tinha a consciência que, mesmo sendo um profssional experiente,
cada movimento e atividade do meu cotidiano ganhariam agora um ar de
ineditismo. Posso atestar que responder um simples e-mail ou editar uma fórmula
no Excel se tornaram potenciais frustrações. E sim! Esta é a palavra correta,
pois nào há termo melhor para definir a sensação de saber que você sóprecisa
clicar em um botão, o qual você tem certeza onde está, mas não consegue colocar
o ponteiro do mouse sobre ele. Tudo precisa ser reaprendido, e isso é
extremamente frustrante.
Quando me reuni com
meus colegas de Siemens para definir que eu poderia ser a pessoa responsável
por resolver o pequeno problema relatado no primeiro parágrafo, confesso que
fiquei com muito receio. Eu já tinha dedicado um tempo tentando ler alguns códigos-fonte
com leitores de tela, mas não tinha a menor ideia de como me sairia utilizando
uma IDE complexa como o Visual Studio. Como a saída do script que devia
ser consertado era gráfica, combinei com um colega que ele seria responsável
por validar se o resultado final era de fato o esperado, entretanto, eu deveria
ser preciso na codificação e testar o fluxo da alteração dentro da minha mente.
Isto se equivale a eu ter que chamar alguém paraolhar o quadro que fixei na
parede e me dizer se ele está de fato bem alinhado. Em minha defesa, além de
ter outras atividades em paralelo e da alteração do próprio algoritmo, eu
também deveria readaptar a configuração do Visual Studio às minhas novas
necessidades, tais como aprender teclas de atalho, baixar e resolver conflitos
de código do versionador (TFS, neste caso), entre outras. Isso seria o mesmo
que eu ter que sair da minha casa para escolher e comprar martelo, pregos e a
própria moldura a ser fixada na parede.
Em termos práticos,
linguages de programação como C# e JavaScript tendem a ser bem legíveis, principalmente
para profissionais já experimentados. Portanto, apesar dagrandíssima sobrecarga
de não contar com a visão para compreender o algoritmo, essa tarefa é um pouco
mais simples se compararmos com liguagens de marcação, como o XML e XSLT, pois
o excesso de símbolos existentes neste último citado complica demais o seu
entendimento. E para ilustrar melhor tudo isso, faça o exercício de ler em voz
alta a linha abaixo, que está longe de ser algo complexo, e logo terá uma noção
do que estou narrando aqui.
<xsl:value-of
select="QHXDeb:LogMessage(5,concat('WAA: defaultVariable:
',string($defaultVariable)))"/>
Para complementar,
algo que se tornou extremamente importante é a profunda concentração que tenho
que manter ao tentar ler uma lógica expressa em qualquer rotina. Sem contar que
memorizar números de linhas se tornou uma necessidade que outrora não fora tão essencial
assim.
Embora eu já seja capaz
de relatar estes pontos mais diretos sobre a dificuldade de programar com uma
gigantesca limitação física, não posso também deixar de compartilhar a sobrecarga
mental e emocional que esta experiência gera. Lembro-me que gastei quase uma
hora na primeira linha XML que tive contato para tentar entender o que estava
escrito ali. Para tanto fui obrigado a alterar a velocidade do leitor de tela
para o mais devagar possível e percorrer caracter por caracter para enfim
entender a sua complexa lógica. No meio de todo esse processo, foram
incontáveis os momentos nos quais pensei em desistir e que simplesmente tive
que me levantar, andar um pouco e tomar um chá para retomar a leitura mais
tarde. Além disso, inúmeras vezes eu me debrucei sobre a mesa e dormi, pois
estava totalmente exausto.
Eu sei que histórias como
a minha podem (e até devem) ser usadas como motivação paraqueles que porventura
passam por algo análogo. No entanto, por mais que eu esteja aqui afirmando que
o relato do primeiro parágrafo significa a maior realização da minha carreira,
ela não o é simplesmente pelo fato de eu ter conseguido chegar ao resultado esperado.
Ao contrário, o quadro bem alinhado na parede foi somente a consequência lógica
dos fatos. O que realmente tornou esta jornada espetacular para mim, foi a
jornada em si. Foi descobrir que ainda há algo que eu posso alcançar a despeito
da falta de visão e que, contando com este grande apoio da empresa e dos meus colegas
de trabalho, isso jamais será uma barreira intransponível para mim.
Não me iludo porém. Sei
que, assim como nas duas semanas da pequena história que contei neste texto, frustrações
ainda acontecerão a todo momento. Mas, a sensação de que algo ainda é possível,
de que um caminho ainda pode ser perseguido e de que a minha carreira não será
jogada pela janela é o que de fato me motiva a manter a cabeça erguida e seguir
em frente.
Weber Amaral
Arquiteto de Sistemas Industriais
Nota:
·
Este texto também foi publicado em inglês.
Você é fora da curva. Todo o meu respeito, carinho e admiração por você, primo. Dessa vez foi o quadro na parede, logo logo, as pontes serão construídas novamente. Você vai muito longe, não tenho dúvidas. .. Te amo!!
ResponderExcluirOi prima, muito obrigado pelo apoio e certamente para irmos longe precisamos de fato construir pontes - e viva à metáfora. Também te amo. Beijão
ExcluirVocê é gigante, um exemplo de determinação e perseverança. Que texto lindo!
ResponderExcluirOObrigado Aline. Sou gigante porque convivo com gigantes também. Muito obrigado pelo grande apoio sempre. Beijão
ExcluirCara, te admiro e me orgulho de você, show, simplesmente.
ResponderExcluirObrigado Fabio. O apoio de amigos é o que nos dá força de seguir em frente também. Abração.
ExcluirQue extraordinário vc é! Vou lendo e ficando boquiaberta com tanta garra e determinação! Quando eu crescer quer ser igual à vc! Pelo menos um dedinho do que vc é! KKKK!
ResponderExcluirAcredite, você pode ser o que você quiser - menos minha tia!.
ExcluirBeijos madrinha e prima.
Golias não foi páreo para Davi! A sua deficiência não será um obstáculo e sim uma lição de vida para todos nós! Parabéns pelo relato e texto impecáveis!
ResponderExcluirEu gostava do Golias, era engraçado! .. Ops, péra, você tá falando do da Bíblia? hehehe
ExcluirObstáculo a deficiência vai sempre ser sim, mas eu vou dando um jeito de ir desviando.
Beijosssss
É Bito... você não se cansa de me surpreender.
ResponderExcluirMesmo com toda empatia, não consigo sequer imaginar o que passou. Não sei como seria ter de programar sem enxergar. Mas de uma coisa tenho certeza: esse obstáculo, que foi do tamanho de uma montanha nessas duas semanas, será tratado por ti como uma pequena pedra daqui um ano ou dois; não que essa mesma atividade ficará mais simples, mas é que sua resiliência lhe fará cada vez mais forte e preparado para transpor desafios cada vez maiores. Parabéns pelo profissionalismo e pela lição de vida.
Valeu Guto. Não posso, nem de longe, afirmar que está sendo fácil. Como relatei acima, cada movimento é árduo, mas vou tentando a cada dia. A chave é ter paciência e não achar que vou ser tão bom quanto muitos exemplos que tenho conhecido por aí de uma hora pra outra. Você está certo na contagem, ainda tenho muito chão para que esses pequenos casos aí virem de fato pequenos. Por hora são gigantes.
ExcluirAbraços.
Um exemplo para todos de garra, determinação e perseverança. Parece que não, mas eu te amo desde bebezinho 😂 👏🏻👏🏻
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