A maior realização da minha carreira

Há alguns meses, um cliente relatou um problema que lhe trazia muita inconveniência ao utilizar uma ferramenta de software desenvolvida pela Siemens. Fizemos uma reunião e definimos que eu poderia ser a pessoa responsável por verificar o que estava acontecendo e implementar uma possível correção. Mal sabia eu que isto se converteria no maior desafio de toda a minha carreira profissional. Em termos técnicos, eu teria que adicionar dois parâmetros em um documento XML e alterar o código para deixar de realizar os seus cálculos já pré-estabelecidos usando valores fixos. Por isso, aquela rotina específica, que houvera sido inicialmente desenhada com uma mescla de C#, xslt e JavaScript, deveria agora buscar os parâmetros definidos dinamicamente pelo usuário no citado arquivo XML. Chegar ao resultado esperado, porém, não foi nada fácil. Tive que contar muito com a colaboração de meus colegas e trabalhar arduarmente por longuíssimas duas semanas para conseguir apresentar a solução para o cliente. No fim tudo deu certo e pude celebrar a entrega do que julgo a maior realização de toda a minha carreira professional.

Imagino que após ler o parágrafo anterior, algumas perguntas devam ter surgido em sua mente, portanto, para que fique mais claro o motivo disso tudo, creio que é necessário que eu forneça alguns detalhes sobre a minha formação profissional e vida pessoal.

 


Foto de rosto de Weber Amaral, usando óculos, terno preto, camisa cinza e gravata azul.
Apesar de ter trabalhado por um tempo nos Correios Brasileiros, a minha carreira se deu totalmente na indústria. Meu primeiro emprego foi um trabalho de um mês na Schindler Elevadores, na qual eu fazia atualização de registros de materiais no SAP-MM. Já meu estágio foi em uma fábrica de caixas de câmbio da Renault Espanha, onde eu era responsável pelo apontamento de produção e de paradas, além de gerar indicadores e relatórios industriais para todo o setor de engenharia. Após voltar ao Brasil e concluir a faculdade, comecei então a trabalhar naSiemens, primeiramente na Chemtech, umaempresa de engenharia e software do grupo. Nestes últimos 13 anos eu me especializei em projetos de TI Industrial para grandes empresas de setores de transformação de produtos, todos muito sensíveis e diversos, dentre eles geração de energia, químicos, petroquímicos, metais e mineração, papel e celulose, tratamento e distribuição de água, alimentos e bebidas, e outros. Participei e coordenei projetos de várias naturezas dentro da engenharia de software, desde trabalhos conceituais, passando por desenvolvimento puro de novos sistemas, testes de aceitação com usuários, design de arquiteturas de soluções e, principalmente, integração e orquestração de sistemas industriais. Fiz empreitadas com grandes equipes, bem como projetos solitários em vários clientes localizados em diversos países do globo. Meu trabalho sempre esteve ligado a soluções de alta criticidade industrial, tais como sistemas de gerenciamento de manufatura (MES), gestão de laboratórios industriais (LIMS), bases de dados históricas para chão de fábrica (PIMS), controle de armazéns automatizados (WCS) e controles estatísticos de processo (CEP). Há seis anos eu vim transferido do Brasil para os Estados Unidos, onde segui com projetos de TI Industrial para grandes corporações de manufatura, tanto com processo contínuo quanto discreto, porém agora mais focado em inteligência operacional (OI). Dessa forma, como creio que sempre entreguei meus projetos atendendo às expectativas de custos, qualidade e tempo, considero-me sim, até o momento, um profissional com um relativo êxito dentro da área de projetos de tecnologia da informação industrial.

Caso você não seja da área de TI e esteja porventura se sentindo deslocado no meio da minha narrativa, é como se um construtor experiente, que já participou do levantamento de grandiosas obras como pontes, viadutos, túneis ou altos edifícios, de repente afirmasse que acaba de pendurar um quadro em uma parede, e que esta é a maior realização da sua carreira. Ainda pior é ele exclamar que, mesmo contando com a ajuda de algumas pessoas, a moldura só esteve bem fixada após duas semanas de muito trabalho.

Para aqueles que acompanham este blog, a aparente contradição pode já parecer destravada, entretanto vou tentar elucidar melhor os fatos.

Convivo, desde os seis anos de idade, com uma doença auto-imune e degenerativa nos olhos chamada pars planite. Apesar de eu jamais ter enxergado muito bem, minha visão pelo menos atingia, com muita dificuldade, os requisitos mínimos durante toda a minha vida. Passei por mais de cinquenta cirurgias para tentar postergar algo que sempre achei inevitável no meu destino. Em 2015 perdi totalmente uma das vistas e a outra entrou em uma fase mais acentuada de degradação três anos mais tarde. No começo de 2021, quando completei três décadas de tratamento oftalmológico, o olho restante piorou de tal forma que logo pude ser declarado cego. Passei então por um período de alguns meses de afastamento do trabalho para tentar me adaptar a um mundo novo que se abria diante de mim, a despeito de esta não ser a minha vontade. Dediquei-me a estudar Braille e orientação e mobilidade, téccnica esta que tem me ensinado a caminhar com minhas bengalas Filomena e Severina. Além disso, mergulhei a fundo no estudo de tecnologias assistivas, e como eu poderia ser novamente produtivo na minha profissão, por mais que este conceito tenha tomado um novo significado para mim, discussão esta muito abordada aqui neste blog.

Quando retornei ao trabalho, eu tinha a consciência que, mesmo sendo um profssional experiente, cada movimento e atividade do meu cotidiano ganhariam agora um ar de ineditismo. Posso atestar que responder um simples e-mail ou editar uma fórmula no Excel se tornaram potenciais frustrações. E sim! Esta é a palavra correta, pois nào há termo melhor para definir a sensação de saber que você sóprecisa clicar em um botão, o qual você tem certeza onde está, mas não consegue colocar o ponteiro do mouse sobre ele. Tudo precisa ser reaprendido, e isso é extremamente frustrante.

Quando me reuni com meus colegas de Siemens para definir que eu poderia ser a pessoa responsável por resolver o pequeno problema relatado no primeiro parágrafo, confesso que fiquei com muito receio. Eu já tinha dedicado um tempo tentando ler alguns códigos-fonte com leitores de tela, mas não tinha a menor ideia de como me sairia utilizando uma IDE complexa como o Visual Studio. Como a saída do script que devia ser consertado era gráfica, combinei com um colega que ele seria responsável por validar se o resultado final era de fato o esperado, entretanto, eu deveria ser preciso na codificação e testar o fluxo da alteração dentro da minha mente. Isto se equivale a eu ter que chamar alguém paraolhar o quadro que fixei na parede e me dizer se ele está de fato bem alinhado. Em minha defesa, além de ter outras atividades em paralelo e da alteração do próprio algoritmo, eu também deveria readaptar a configuração do Visual Studio às minhas novas necessidades, tais como aprender teclas de atalho, baixar e resolver conflitos de código do versionador (TFS, neste caso), entre outras. Isso seria o mesmo que eu ter que sair da minha casa para escolher e comprar martelo, pregos e a própria moldura a ser fixada na parede.

Em termos práticos, linguages de programação como C# e JavaScript tendem a ser bem legíveis, principalmente para profissionais já experimentados. Portanto, apesar dagrandíssima sobrecarga de não contar com a visão para compreender o algoritmo, essa tarefa é um pouco mais simples se compararmos com liguagens de marcação, como o XML e XSLT, pois o excesso de símbolos existentes neste último citado complica demais o seu entendimento. E para ilustrar melhor tudo isso, faça o exercício de ler em voz alta a linha abaixo, que está longe de ser algo complexo, e logo terá uma noção do que estou narrando aqui.

<xsl:value-of select="QHXDeb:LogMessage(5,concat('WAA: defaultVariable: ',string($defaultVariable)))"/>

Para complementar, algo que se tornou extremamente importante é a profunda concentração que tenho que manter ao tentar ler uma lógica expressa em qualquer rotina. Sem contar que memorizar números de linhas se tornou uma necessidade que outrora não fora tão essencial assim.

Embora eu já seja capaz de relatar estes pontos mais diretos sobre a dificuldade de programar com uma gigantesca limitação física, não posso também deixar de compartilhar a sobrecarga mental e emocional que esta experiência gera. Lembro-me que gastei quase uma hora na primeira linha XML que tive contato para tentar entender o que estava escrito ali. Para tanto fui obrigado a alterar a velocidade do leitor de tela para o mais devagar possível e percorrer caracter por caracter para enfim entender a sua complexa lógica. No meio de todo esse processo, foram incontáveis os momentos nos quais pensei em desistir e que simplesmente tive que me levantar, andar um pouco e tomar um chá para retomar a leitura mais tarde. Além disso, inúmeras vezes eu me debrucei sobre a mesa e dormi, pois estava totalmente exausto.

Eu sei que histórias como a minha podem (e até devem) ser usadas como motivação paraqueles que porventura passam por algo análogo. No entanto, por mais que eu esteja aqui afirmando que o relato do primeiro parágrafo significa a maior realização da minha carreira, ela não o é simplesmente pelo fato de eu ter conseguido chegar ao resultado esperado. Ao contrário, o quadro bem alinhado na parede foi somente a consequência lógica dos fatos. O que realmente tornou esta jornada espetacular para mim, foi a jornada em si. Foi descobrir que ainda há algo que eu posso alcançar a despeito da falta de visão e que, contando com este grande apoio da empresa e dos meus colegas de trabalho, isso jamais será uma barreira intransponível para mim.

Não me iludo porém. Sei que, assim como nas duas semanas da pequena história que contei neste texto, frustrações ainda acontecerão a todo momento. Mas, a sensação de que algo ainda é possível, de que um caminho ainda pode ser perseguido e de que a minha carreira não será jogada pela janela é o que de fato me motiva a manter a cabeça erguida e seguir em frente.

 

Weber Amaral

Arquiteto de Sistemas Industriais

 

Nota:

·        Este texto também foi publicado em inglês.

Comentários

  1. Você é fora da curva. Todo o meu respeito, carinho e admiração por você, primo. Dessa vez foi o quadro na parede, logo logo, as pontes serão construídas novamente. Você vai muito longe, não tenho dúvidas. .. Te amo!!

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    1. Oi prima, muito obrigado pelo apoio e certamente para irmos longe precisamos de fato construir pontes - e viva à metáfora. Também te amo. Beijão

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  2. Você é gigante, um exemplo de determinação e perseverança. Que texto lindo!

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    1. OObrigado Aline. Sou gigante porque convivo com gigantes também. Muito obrigado pelo grande apoio sempre. Beijão

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  3. Cara, te admiro e me orgulho de você, show, simplesmente.

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    1. Obrigado Fabio. O apoio de amigos é o que nos dá força de seguir em frente também. Abração.

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  4. Que extraordinário vc é! Vou lendo e ficando boquiaberta com tanta garra e determinação! Quando eu crescer quer ser igual à vc! Pelo menos um dedinho do que vc é! KKKK!

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    1. Acredite, você pode ser o que você quiser - menos minha tia!.
      Beijos madrinha e prima.

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  5. Golias não foi páreo para Davi! A sua deficiência não será um obstáculo e sim uma lição de vida para todos nós! Parabéns pelo relato e texto impecáveis!

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    1. Eu gostava do Golias, era engraçado! .. Ops, péra, você tá falando do da Bíblia? hehehe
      Obstáculo a deficiência vai sempre ser sim, mas eu vou dando um jeito de ir desviando.
      Beijosssss

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  6. É Bito... você não se cansa de me surpreender.
    Mesmo com toda empatia, não consigo sequer imaginar o que passou. Não sei como seria ter de programar sem enxergar. Mas de uma coisa tenho certeza: esse obstáculo, que foi do tamanho de uma montanha nessas duas semanas, será tratado por ti como uma pequena pedra daqui um ano ou dois; não que essa mesma atividade ficará mais simples, mas é que sua resiliência lhe fará cada vez mais forte e preparado para transpor desafios cada vez maiores. Parabéns pelo profissionalismo e pela lição de vida.

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    1. Valeu Guto. Não posso, nem de longe, afirmar que está sendo fácil. Como relatei acima, cada movimento é árduo, mas vou tentando a cada dia. A chave é ter paciência e não achar que vou ser tão bom quanto muitos exemplos que tenho conhecido por aí de uma hora pra outra. Você está certo na contagem, ainda tenho muito chão para que esses pequenos casos aí virem de fato pequenos. Por hora são gigantes.
      Abraços.

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  7. Um exemplo para todos de garra, determinação e perseverança. Parece que não, mas eu te amo desde bebezinho 😂 👏🏻👏🏻

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