O alinhamento dogmático
Apesar de alguns dos artigos
publicados por aqui apontarem o contrário, eu sou muito grato por ter tido
formação religiosa durante minha infância e adolescência. Principalmente porque
a igreja que eu costumava frequentar possuía as estruturas de estudo religioso
muito bem organizadas. Lembro-me bem que foi durante estes estudos que aprendi
boa parte do que sei sobre outras vertentes do cristianismo e também sobre os
demais cultos não-cristãos. Além disso, dependendo da senioridade atingida
dentro da congregação, as lições se tornavam mais aprofundados e interessantes.
Tais estudos aconteciam em um dia secundário, geralmente aos sábados, ao passo
que o culto oficial da igreja se dava aos domingos.
Logicamente,
todos os estudos ministrados dentro de uma igreja são tendenciosos e
favorecerem a denominação religiosa em questão. Portanto, hoje, olhando para
trás, sou capaz de enumerar grandes divergências, contradições e discordâncias
que tenho com tudo que era ensinado nos diferentes níveis pelos quais eu passei.
Bem,
por ter permanecido na igreja por muitos anos, eu passei por praticamente todos
os níveis e cheguei até a ministrar alguns destes estudos. Por isso, recordo-me
bem do primeiro nível de todos, o qual se denominava “As 4 leis espirituais” e
era decodificado em um minilivro de bolso, que era utilizado para que
evangélicos pudessem abordar pessoas na rua e pregar a introdução ao
protestantismo. Como o próprio nome sugeria, o minilivro enumerava quatro
princípios básicos do evangelho. Eram eles:
- Deus ama o homem e tem um plano
maravilhoso para a sua vida
- O
homem é pecador e, portanto, está destituído do plano perfeito de Deus
- Jesus
é a única ponte possível entre o homem e Deus
- É
necessário que o homem aceite Jesus como seu senhor e salvador para se
encontrar com Deus
Já
conversamos sobre o primeiro item dessa lista no texto A
(in)justiça divina e também em O
protagonismo assassino, nos quais analisamos essa noção
religiosa que prega que o universo é todo concebido para o nosso próprio
benefício e que Deus possui o controle total de tudo o que por aqui acontece. Além
disso, também discutimos os itens 3 e 4 na crônica Predestinados
ao inferno, na qual eu disserto sobre o
caráter messiânico que o cristianismo engloba e como isso influencia os seus
fiéis. Por fim, eu estou ainda preparando um texto sobre a segunda lei
espiritual, mas adianto que esta culpabilização é parte integrante e necessária
de como o cristianismo moderno é fundamentado.
Bem,
após passar pelas quatro leis espirituais, o indivíduo era então aceito dentro
da igreja, ou seja, a partir daquele momento de “aceitar Jesus” ele já fazia
parte da congregação. A próxima lição que ele deveria fazer, no estilo
mano-a-mano com um discipulador, denominava-se “Aceitei Jesus, e agora?”, nome
que eu julgava muito sugestivo. Lembro-me de ter feito esse estudo com várias
pessoas durante meus anos de evangélico. O caderno de estudo deste módulo era
pequeno (eu diria que possuía umas oito páginas), e na primeira folha ele
trazia um conceito fundamental para que a pessoa seguisse a fé cristã. Tal
conceito era expresso na seguinte frase:
“Ou
você acredita que a Bíblia toda é a verdade absoluta e representa a vontade de
Deus, ou você a considera falsa em sua totalidade”.
(Obs:
Obviamente não possuo o livro em mãos, portanto, essa pode não ser a
sentença literalmente correta. Contudo, asseguro que a ideia está de
acordo).
Conforme
já dito algumas vezes por aqui, eu, de coração, não vejo a religião como algo
maléfico por si só. Ao contrário, ela acolhe grupos diversos em volta de um
propósito único e traz conforto a indivíduos que, em condições normais,
estariam totalmente desesperançosos com a sua própria existência. Da mesma
forma, também é inegável o papel social desempenhado por diversas congregações
religiosas, principalmente se analisarmos a penetração da igreja católica no
interior do Brasil durante toda a nossa história e, atualmente, o fenômeno de
profunda capilaridade dos cultos evangélicos, os quais estão presentes em
praticamente todas as comunidades do país, inclusive as mais remotas e
carentes.
Contudo,
também devemos analisar que a religião é fundamentada em conceitos dogmáticos,
ou seja, que os seus preceitos são fixos e não passíveis de debate. E assim, a
Bíblia é vista por cristãos, de forma dogmática e absoluta - como descrito no
exemplo do livro de estudos da história acima.
Mas
qual o problema disso?
Bem,
primeiro de tudo, devemos pensar que todo ser humano é demasiadamente complexo
para se encaixar em um molde pré-estabelecido, e que muito menos esse modelo
terá um perfeito alinhamento com um livro codificado há milênios. Lembre-se que
a Bíblia não é um livro puramente místico, mas, sim, que ela também é utilizada
como base moral por seus seguidores. Portanto, é extremamente improvável que o
ser humano do século XXVI possa se enquadrar nos padrões definidos pela Bíblia.
Outro
ponto a observarmos, e que particularmente me incomoda bastante, é que quando
tomamos uma verdade absoluta sobre nossas vidas, nos tornamos parte daquela
realidade paralela e pré-estabelecida. Explico-me.
Quando
lemos um livro, assistimos um filme ou mesmo ouvimos um outro tipo de história,
facilmente nos vemos imersos naquela realidade paralela e, dependendo de quão
interessante seja o conto, nos envolvemos totalmente com ele. Isto é,
transportamo-nos do nosso mundo real para o da ficção. De mesmo modo, eu
observo que a analogia se repete dentro da religião; contudo, ao contrário do
filme - que possui um fim - o cristianismo toma toda a nossa vida.
Em seu livro O Anticristo, Nietzsche afirma que um dos pilares do cristianismo é justamente o descolamento da realidade que ele proporciona (e obriga) aos seus fiéis. Aliás, ele ainda afirma que esse é um movimento necessário para a inserção do indivíduo dentro da religião. E eu consigo entender isso ao passo que para tomarmos um livro - como a Bíblia - como a nossa verdade absoluta, nós necessitamos realmente nos desprender (e nos alienar) do mundo que está à nossa volta.
Portanto,
eu concordo 100% com o que a Bíblia diz? Com certeza não. Mas, também é
importante dizer que, apesar de ter citado Nietzsche acima, eu tampouco
concordo com ele em sua totalidade (ou pelo menos com aquilo que conheço da sua
obra). Pois, assim como cito no texto O
golpe da frase feita, não existem fórmulas mágicas para
a resolução dos nossos problemas cotidianos, nem tampouco para aquilo que é
mais básico e fundamental nas nossas vidas. Ou seja, é importante conhecermos a
realidade que nos envolve e, a partir das bases que temos, traçar o nosso
próprio caminho no complexo jogo da vida.
Para
finalizar, deixo um versículo da própria Bíblia, da primeira carta do Apóstolo
Paulo aos Tessalonicenses, capítulo 5, versículo 21, o qual diz: “Coloquem tudo
à prova e retenha aquilo que é bom”. Discernimento é a palavra-chave.
Weber Amaral
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Binho, cade texto um aprendizado novo. Esse versículo no fim seria uma boa maneira de não pegar tudo na religião como verdade absoluta.
ResponderExcluirValeu Gandhi
ExcluirExato. Sempre gostei muito desse versículo e acho que é o que baseia o pensamento que devemos sim ponderar tudo o que está escrito.
Abraços.
Aprendo muito com seus textos! Fui criada praticamente "dentro" da igreja onde aprendi muitas coisas boas e vi muitas não tão boas! Aprendi o suficiente para entender que igreja é a nossa própria casa, nossa família, nosso trabalho, bem como o nosso coração! Portanto o que fazemos nesses ambientes e como agimos revela qual tipo de pessoa sou e o quero ser... traz como consequência, resultados positivos e tb negativos. Como lemos em muitos lugares, a gente colhe o que planta!
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