A casa, a cadeira e a inclusão

Hoje eu me peguei pensando na trajetória que percorri até aqui e nas várias pessoas que já cruzaram o meu caminho e, assim como acontece toda vez que faço essa reflexão, eu me dei conta do privilégio que tive (e continuo tendo) de ter encontrado pessoas formidáveis nessa jornada chamada vida. Provavelmente você, que me lê neste momento, é um desses seres extraordinários, com habilidades e caráter ímpares e que, de alguma forma, transformou a minha vida para melhor.

            Neste texto eu quero, então, falar sobre duas dessas pessoas geniais com as quais tive o prazer de conviver durante o ensino médio, mas que até hoje, mesmo que distantes fisicamente, continuam fazendo parte da minha vida.

            O primeiro é o Fabrício, um amigo que conheci assim que entramos no ensino médio. Lembro-me de ter visto o seu nome logo após o meu na classificação do processo seletivo de ingresso ao Cefet-PR, o que não é nenhum mérito meu, pois ambos passamos bem mal - na segunda chamada. Ele veio de uma família simples, mas sempre demonstrou uma grande dedicação aos estudos e também facilidade de aprendizagem, ou seja, estamos falando de uma pessoa altamente capacitada e inteligente. Só para vocês terem uma dimensão do que eu estou expondo aqui, lembro-me bem de quando, no primeiro ano do ensino médio, o professor de Princípios Tecnológicos pediu para que fizéssemos uma redação com o seguinte tema: “Qual é a maior invenção humana dos últimos 2000 anos?”. A maioria de nós escreveu, em poucas linhas, sobre os clichês avião e automóvel, mas houveram outros que discorreram sobre a eletricidade, a internet ou o computador. Contudo, Fabrício deixou a sala inteira com um gigantesco ponto de interrogação estampada na testa ao apresentar a sua dissertação, a qual, com argumentos firmes, enunciava que a maior invenção dos últimos dois mil anos era o transistor.

            Nem preciso dizer que o Fabrício atingiu o já anunciado sucesso profissional, pois hoje, além de estar em busca do seu título de doutor, também foi o primeiro da nossa turma a conseguir um emprego na área técnica e, ainda mais importante que isso, ele construiu uma linda família. Para completar o pacote, em 2007, sua esposa e ele deram um passo ousado  e compraram a tão sonhada casa própria


            Era uma casa muito bonita, construída em um terreno em dois níveis (creio que deva haver um termo técnico para isso, mas eu desconheço), ou seja, a garagem ficava no nível da rua e logo havia uma grande escada que levava à casa que estava no plano superior.

            Conheci a residência do casal logo que a compraram, pois, logicamente, Fabrício prontamente organizou um churrasco com a velha turma do ensino médio para celebrarmos a sua mais recente conquista.

            Era um sábado de temperatura bem amena. Cheguei lá ao entardecer e toquei a campainha. Fabrício prontamente abriu o portão:

            “Olá, seja bem-vindo à nossa casa. O pessoal já está lá em cima e a carne já está na churrasqueira”.

            Entrei pelo portão e vi o seu carro e sua moto estacionados. Ele me mostrou o pequeno  jardim que havia ali próximo à garagem e já fomos subindo as escadas que ficavam à nossa direita. Ao fim dos degraus cheguei ao quintal, no qual a música já tocava e a churrasqueira, de fato, já estava acesa. Cumprimentei o Johni, o Gustavo, o Marco, o Mitsuo e outros que estavam ali. Fabrício logo me ofereceu algo para beber e também me convidou para entrar e conhecer o interior da casa. 

Contudo, neste momento, ouvimos uma buzina.

            “O Paulino chegou!” - disse o Gustavo.

 

            Todos, então, paramos o que fazíamos e fomos para a frente da casa para receber a Van vermelha dos Tsurushima. A dona Neuza desceu, abriu a porta traseira e estendeu a rampa que a família adaptara no veículo. Paulino, então, desceu a rampa com a sua cadeira de rodas motorizada recém adquirida. Ele estava com o seu habitual sorriso estampado em seu rosto e logo que chegou ao asfalto, olhou para a casa do Fabrício e disse:

            “Fabrício, e essa sua casa de marajá aí heim?”

            Também conheci o Paulino no ensino médio e, assim como o Fabrício, e outros daquela turma, ele era (e ainda é) um gênio. Gostava muito de ler, jogar xadrez e se dava bem em qualquer matéria na escola. Não à toa, formou-se em duas faculdades: administração e direito. e, após formado, conquistou um importante cargo no Tribunal de Justiça do Paraná.

            Tanto Paulino quanto eu temos uma vaga lembrança de termos estudados juntos na pré-escola, mas foi durante a segunda série do ensino fundamental que ele viu seu pré-anunciado destino acontecer. Enquanto brincava no recreio da escola, ele torceu o joelho e teve que ir para a cadeira de rodas. Da qual, infelizmente, ele jamais saiu. 

Paulino sofre de distrofia muscular, doença degenerativa que, assim como pressupõe o nome, enfraquece a musculatura do corpo e causa enormes dificuldades na mobilidade da pessoa. 

Todos em Cornélio Procópio conhecem o Paulino, pois ele sempre buscou o seu espaço e jamais deixou de se auto pilotar pelas ruas da cidade. Além disso, um dos seus irmãos, infelizmente, possui a mesma enfermidade, ou seja, os dois sempre foram vistos dirigindo suas cadeiras para todo o canto. 

Vale salientar que: sim, o fato dos dois irmãos compartilharem a mesma doença torna a situação bem mais complexa para a família. Contudo, todos ali são alvos da admiração e reconhecimento daqueles que os conhecem. Mas, este será um assunto a ser tratado mais adiante em outro texto.

Apesar dessa grande carga que a doença traz para si - a qual nem eu nem você, leitor(a), podemos ter a correta dimensão -  o Paulino sempre foi uma pessoa super agradável e que tem um papo inteligente e atrativo, isto é, pode conversar sobre qualquer assunto da maneira mais leve possível. Além disso, ele sempre tem uma risada pronta para uma bobagem qualquer que é dita no privado ou no ambiente público. Ou seja, simplesmente todos gostam muito dele, e isso se deve, puramente, ao quão carismático, inteligente e agradável ele é.

E a prova de tudo isso é que ele já desceu na frente da casa do Fabrício fazendo piadas naquele sábado ao entardecer. Ele, então, cumprimentou a cada um, combinou o horário que sua mãe o buscaria e novamente olhou para a casa do Fabrício, só que desta vez com um pouco menos de irreverência:

“Tem bastante escada, não é filhão?” - disse ele, com um ar sarcástico e preocupado.

Ele, então, pilotou para dentro do portão, virou à direita e ficou próximo ao primeiro degrau da escada.

“Vocês aguentam?”

“Ainda bem que você ainda não jantou.” - brincou Johni.

Usamos, pois, todo o nosso conhecimento técnico de anos de Cefet para calcular a melhor maneira de subir o Paulino. Após um pequeno planejamento, Johni e Gustavo seguraram na parte traseira da cadeira, enquanto Fabrício e eu levantamos os apoios dos pés e, de maneira sincronizada, suspendemos o nosso amigo. Ao mesmo tempo, o Mitsuo ficou nos guiando. Subimos uns cinco degraus e já nos deparamos com a curva de 90 graus para a esquerda. Mitsuo ia nos orientando para onde virar. 

Tomamos um fôlego, respiramos fundo e seguimos reto, subindo degrau a degrau. Senti um leve incômodo nas costas pela posição que ficara, mas seguimos à toda velocidade até o aparentemente inatingível final da escada. Fizemos, então, o esforço final e aterrizamos o Paulino no quintal. 

Recuperamos o fôlego enquanto Paulino respirava aliviado por não ter sofrido muito nas nossas mãos. E, então, o Marco, que ficara na churrasqueira disse em voz alta:

“Seus fracos, vocês demoraram heim! Tem carne pronta para todo mundo!”.

Conversamos por horas e horas e tivemos um grande momento entre amigos.

 

Já mencionei algumas vezes em meus textos que, apesar de ter a consciência e a convicção de que acessibilidade é um direito de todo ser humano, eu, por várias vezes, me sinto de certa forma infringindo a paz alheia e criando desconforto ao solicitar quaisquer ajudas para me sentir mais incluído em um determinado ambiente. E isso é normal, afinal todos queremos ser totalmente independentes.

Eu poderia citar várias situações da minha vida nas quais eu necessitei de mais inclusão e fui atendido sem o menor questionamento, contudo, em algumas poucas eu senti sim uma má vontade alheia, o que certamente me fez “deixar quieto” na vez subsequente. Portanto, isso me faz refletir que a inclusão é, de fato, custosa e demanda esforço e, acima de tudo, empatia.

Vale ressaltar que nos casos de má vontade, eu não julgo as pessoas como más, porém, sim, como desinformadas.

Contudo, no caso daquele belo entardecer de primavera norte-paranaense, nem sequer passou pela cabeça do Fabrício fazer um churrasco em sua casa nova e não convidar o Paulino. Tampouco sentimo-nos obrigados ou desconfortáveis em carregá-lo escada acima (aliás, fizemos isso várias vezes durante a nossa longa amizade). Ao contrário disso, fizemos aquilo simplesmente porque queríamos estar todos juntos naquele momento especial, e o Paulino sempre fez parte do nosso “todos”. 

Para uma análise mais profunda, calcula-se que um em cada dez pessoas tenha alguma deficiência física. Mas, mesmo sendo um único ser entre os outros nove, ainda assim ele faz parte do todo. Portanto, nós, enquanto comunidades civilizadas, temos que sim considerar acessibilidade como um fator fundamental de nossa evolução social. afinal, todos temos o direito de nos sentirmos inclusos.

Porém, deixando de lado a visão dos direitos civis e retornando ao caso anedótico de amizade e empatia, eu não contei, mas calculo que aquela escada tinha em torno de 20 a 25 degraus, ou seja, foi uma árdua subida. Entretanto, penso que mesmo que ela tivesse 2000, ainda assim carregaríamos o Paulino rindo e cantando - ainda mais que havia churrasco, música e bebidas à nossa espera.

Dessa forma, quero finalizar este texto com uma frase que o próprio Paulino me disse da última vez que nos encontramos, em março deste ano em mais um dos nossos churrascos: “Estar com amigos e com aqueles que amamos é o melhor remédio que eu posso tomar”.

 

Weber Amaral


Referências: nos textos Você é cego? e Do Tetris ao Super Bowl, eu também falei sobre a importância da amizade e da empatia para pessoas com deficiência. Além disso, no texto O livro que eu não li eu já tinha apresentado os personagens de hoje.


  • Clique aqui para seguir o roteiro de leitura dos textos do Dislexia Visual sugerido pelo autor.

Comentários

  1. Só tenho a agradecer a sua amizade, e a de todos, durante todos esses anos. Sempre soube que seria eterna, pois o que é verdadeiro, nunca acaba, independente de situação ou tempo. Vcs fazem minha vida realmente ter sentido e feliz. Deus os abençoe grandemente, sempre.

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    1. Ahh.. fiquei tão emocionado que esqueci de colocar o meu nome.. kkkkk.. abraços.. Paulino

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    2. Olá senhor desconhecido.. que agora todos sabemos quem é - o nosso protagonista.
      Ser seu amigo sempre foi muito fácil, leve e natural.... um grande abraço a vc filhão.

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  2. Mais um maravilhoso texto!!! Que orgulho te chamar de amigo 🥳

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    1. Obrigado Poli pela força e companheirismo. Tbm me orgulho da sua amizade. Beijo pra família bonita...

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  3. Amei o texto, Binho. Você e a Carol são grandes amigos. ❤️

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  4. Show, Deus abençoe essa amizade eternamente...

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