O menino estrábico

 Nunca desejei transformar este blog em um espaço de revisões literárias, porém acabo de ler um livro cuja temática diz muito respeito aos meus dias atuais e por isso gostaria de compartilhar com vocês algumas das minhas impressões sobre O ensaio sobre a cegueira de José Saramago .Sei que aquilo que penso e refleti quando li o livro tem alguma relevânciapor conta da cegueira ser o assunto principal da obra, mas, além disso, o livro trata de uma pandemia, ou seja,o contexto se torna duplamente interessante.

               Certamente você tem uma ideia sobre o contexto do livro, ou seja, que aborda uma epidemia, a qual surge sem qualquer  explicação e faz com que todos os contagiados se tornem cegos. A princípio o governo tenta isolar os primeiros doentes, porém não há formas de conter o contágio e a cegueira se alastra vastamente entre a população. A história então é narrada em torno dos primeiros infectados.

               O livro é muito complexo e aborda muitas características da sociedade humana,, os personagens são desenhados de uma forma que trazem grande riqueza para a narrativa , ou seja, eu poderia divagar por páginas e páginas sobre muitos e muitos aspectos da obra. Porém, vou me ater a um personagem secundário para a trama: o meniino estrábico.

               Quando a cegueira atinge os primeiros contagiados e eles são levados para a quarentena, cada um tenta se impor de uma forma para seguir a vida da maneira que pode, buscando comida, abrigo e sobrevivëncia como lhe é possível, isto é, dentro das suas grandes limitações, cada um tenta buscar o seu espaço. Menos o menino estrábico, que fica a todo tempo chamando pela mãe, a qual jamais vem lhe resgaatar.. Ou seja, dentro do contexto da estória, ele é o mais vulnerável dentre os vulneráveis, e isso não é só por conta da pouca idade e maturidade, mas também porque ele não possui nada em seus pertences que tem a capacidade de alterar a sorte de todos. Portanto,a elelhe faltam recursos para ser um agente ativo naquela confusão narrada por Saramago.

 

               Sempre admirei o trabalho do professor Leandro  Karnal nas redes sociais, pois acho muito importante termos intelectuais que se dispõem a falar para as massas e traduzir o mais profundo conhecimento literário, filosófico e histórico em uma linguagem acessível a todos nós, cidadãos médios. Por isso já gastei horas e horas assistindo às suas palestras no YouTube e captando todo este conhecimento que ele propaga. Além disso, assisti a várias de suas entrevistas, nas quais, em mais de uma oportunidade, eu ouvi-lhe dizendo que seu maior medo na vida é o de ficar cego um dia.  Tal afirmação do professor não foi muito bem recebida por alguns setores da sociedade, mas eu, particularmente, não polemizo essa declaração e tampouco vejo maldade ou preconceito da sua parte. Principalmente,, caso você extrapole a experiência de um indivíduo cego para um cenãrio distópico e epidêmico, igual o narrado por Saramago, a situação se torna, de fato,  muito angustiante.

               Observação: antes de continuar este texto, quero deixar claro que eu excluo a declaração do professor como preconceito, pois eu posso ver muita sinceridade da sua parte ao citar isso e, além disso, creio que  nenhum de nós consegue domar totalmente os nossos temores. Entretanto vale ressaltar que, conforme já citei por aqui, o medo é a origem de todo o preconceito, e o único remédio para o preconceito é o conhecimento – que eu julgo que ele tem de sobra, a ponto de ser muito bem informado sobre a questão do deficiente no Brasil e no mundo. Portanto, sigo sendo um admirador do seu trabalho e e, até melhor juízo da minha parte, recebo a sua afirmação de forma respeitosa e não capacitista. Fim da observação.

 

               Pois bem, logicamente, por muitas e muitas vezes eu me senti perdido e desiludido ao olhar para dentro de mim e ao mundo a minha volta e me dar conta do quão difícil é viver sem a visão. Por isso mesmo vejo que o medo do professor Karnal talvez também seja o seu temor, isto é, caso você não tenha feito isso jamais em sua vida, experimente botar uma venda nos olhos e fazer qualquer atividade do seu cotidiano.  E logo se verá preso em uma condição altamente angustiante e perturbadora.

Mas, para mim e muitas outras pessoas, a perda da visão é um fato, e encarar a realidade é a melhor atitude que podemos tomar diante de qualquer adversidade. Por isso, fica aqui uma pergunta não retórica: Como lidar com este e outros grandes fatos da nossa realidade?

Primeiramente, o fato de você não conseguir fazer nada com uma venda nos olhos não significa que eu ou qualquer outro deficiente visual tenhamos as mesmas dificuldades. Por isso, eu acredito muito nos fundamentos e nas bases que nos sustentam em momentos difíceis, isto é, quanto mais forte for a fundação de um edifício, mais resistente contra o tempo e o vento ele será. Aqui também vale mencionar a passagem bíblica na qual Jesus conta a parábola de um homem imprudente que construiu sua casa sobre a areia,  e, como não poderia ser diferente, o vento e a chuva a destruíram (Mt 7:24).

Obviamente, é muito difícil prever e anteciparse às adversidades que, por ventura, possam nos acontecer, e imaginar tais dificuldades sobre nós, de fato nos enche de angústia e temor. Por isso, eu creio que o medo do Professor Karnal também se revela em muitos dos que estão lendo este texto agora.

 

Portanto, voltando ao Ensaio sobre a cegueira, O menino estrábico entrou na quarentena ao mesmo tempo dos primeiros contagiados, e conforme citei acima, a única coisa que ele conseguia fazer era pedir pela mãe, além de reclamar que tinha fome. Ou seja, Saramago desenvolve este personagem de uma forma que a sua vulnerabilidade e falta de protagonismo perduram a todo o momento durante a história e, alémdisso, ele, por muitas vezes, acaba comprometendo as refeições da rapariga dos óculos escuros, que é quem se encarrega de cuidar dele desde o princípio.

Pausa para adicionar dois comentários: Primeiramente, já nas páginas iniciais, nota-se que nenhum personagem tem seu nome enunciado na história, este é um detalhe que podemos abordar em um outro texto, pois ele é muito interessante e também nos faz pensar sobre outros aspectos da cegueira. Além disso, lembre-se que Saramago é português, ou seja, “rapariga” tem o significado de mulher jovem.  

 

Desta forma, tenho ouvido muito nestes dias que eu “bravamente tenho lidado com a minha perda de visão, e que o fato de eu poder focar nos meus próximos passos, tais como estudar novas tecnologias assistivas e Braille (voltarei a falar sobre isso), é muito “admirável”. Mas o que eu sempre tento esclarecer é que, ao contrário da distopia de Saramago, eu não fui pego de surpresa pela minha enfermidade e regressão da capacidade visual; e que, além disso, de uma certa forma, eu possuo os fundamentos para hoje poder seguir em frente. E este é o maior legado que meus pais me deixaram na vida.

Por tudo isso, caso você seja mãe ou pai de uma criança com alguma deficiência, ou seja você mesmo a pessoa que sofre com alguma doença sem cura, ou que tenha sofridoum tipo de acidente que te traz limitações físicas sérias, querolhe dizer que o tempo e a doença podem levar a sua visão, audição ou capacidade motora, porém nada poderá apagar os livros que você leu, ou as matérias que estudou e toda a educação e preparo emocional que você teve durante a vida.

Siga em frente!

 

Weber Amaral


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      Comentários

      1. Só para esclarecer, eu obviamente sei que eassim como existem doenças que degeneram nosso físico, também existem aquelas que afetam a nossa memória e capacidade mental e até cognitiva. Portanto, deixo claro que o foco deste texto é outro e já peço desculpas e licença para tal exclusão do tópico central do artigo.

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      2. Perfeito, adoro ler seus textos ! Como já te disse, ainda quero participar do projeto do seu livro !

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        Respostas
        1. Opa, então vamos fazer a parceria aí. Você escreve e eu coloco o meu nome no livro.. hehe bbrincadeira. Definitivamente quero a capa desenhada por vc. Beijos e obrigado pelas palavras

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      3. Respostas
        1. Eita, acho que deu um loop aí no comentário.. Obrigado pela força.. abraços

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      4. Binho, saudades de tu meu amigo!!!
        Que blog incrível que tu montou.
        Parabéns!!!!

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        1. Saudade meu querido. Qualquer dia nós estaremos aí pra comer uma coxinha e tomar uma breja juntos. Valeu pelo apoio, um grande abraço.

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