O som da metamorfose
Há algumas semanas, assistimos ao filme O som do silêncio (Sound of metal). O longa-metragem conta, de uma forma muito particular e impressionante, a história de Ruben Stone, um baterista de uma banda de heavy metal que subitamente perde a audição. O personagem então passa por vários estágios durante e após a sua desagradável descoberta. O filme mostra várias cenas em primeira pessoa, o que faz a audiência sentir na pele as sensações angustiantes e extremamente desafiadoras de um deficiente auditivo. De certa forma, a principal mensagem que o filme transmite é algo que já conversamos por aqui, ou seja, que a deficiência não é algo a ser “consertado”.
Independentemente
de este assunto me ser muito relevante, eu acredito que este tenha sido um dos
melhores filmes que assisti nos últimos tempos, por isso, recomendo demais.
Aliás, aproveito para deixar aqui o agradecimento aos amigos Hermano e Maurien
pela indicação. Entretanto, como este não é um blog de críticas
cinematográficas, vamos ao texto.
Embora o filme não faça qualquer referência ao livro A Metamorfose (pelo menos não que eu
tenha notado), um grande paralelo pode ser traçado entre a clássica obra
de Franz Kafka e a produção de Hollywood. Assim como o baterista, Gregor Samsa,
um caixeiro viajante europeu do início do século XX, se vê repentinamente
transformado em algo que a ele mesmo é repugnante e, como consequência disso,
também passa pelas fases de negação e adaptação que citei acima.
Eu,
honestamente, poderia analisar e divagar sobre muitos aspectos das duas obras
por páginas e páginas, afinal, existem muitos detalhes interessantes que
gostaria de explorar. Porém, vou deixar isso para uma mesa de bar pós pandemia
e dizer que o que mais me impressionou tanto no livro quanto no filme é o fato
de ambos personagens tentarem levar a vida como se nada houvesse acontecido. E
não me refiro à negação do problema, mas sim ao fato de acharem que tudo
poderia ser feito da mesma maneira de antes da metamorfose - ou da perda da
audição.
Gregor
Samsa, mesmo já estando no corpo de um enorme inseto (o livro não deixa
explícito que se trata de uma barata), tenta caminhar da forma que estava
acostumado antes da metamorfose, ou seja, como um animal bípede. Entretanto,
ele sente fortes dores e suas frágeis perninhas mal conseguem lhe tirar do
lugar. Somente após ser repreendido e quase apanhar de um membro da família,
ele cai ao chão e fica com todas as patas no solo; este é o primeiro momento
que ele se sente confortável em seu novo corpo.
Essa
passagem fantástica narrada por Kafka tem uma semelhança absurda com a história
do baterista Ruben Stone e como ele lida com a sua perda da audição.
Conforme
já contei várias vezes por aqui, lido com a minha baixa visão desde meus seis
anos de idade, e a cada dia dessas últimas décadas, meus olhos se comportam de
forma diferente. Ou seja, não posso dizer que a minha perda visual aconteceu
repentinamente, como as obras acima ilustram.
No
entanto, durante toda a minha vida, eu sempre passei por marcos importantes que
me obrigaram a reinventar novas formas de seguir fazendo as mesmas coisas;
sejam casos mais simples, como começar a usar uma fonte maior no celular ou no
computador, ou perdas mais significativas e abruptas, tais como ter que
reaprender a caminhar no meio de uma multidão após perder a visão do olho
direito - o que reduziu o meu campo visual pela metade.
Outro
forte exemplo que posso citar é o curso de Orientação e Mobilidade (O&M)
que venho fazendo há alguns meses. Nele, mais do que aprender técnicas de como
operar a Filomena
e a Severina,
eu descubro formas de encarar os novos desafios da minha atual situação. Ou
seja, é um constante aprendizado e, consequentemente, uma mudança de
perspectiva de vida.
Eu
sei que muitos vêem casos de deficientes de forma muito romantizada, ou seja,
como exemplos de superação e resiliência (já conversamos sobre isso aqui).
Mas, o fato é que esse processo de reinvenção é muito doloroso e nos custa
muito (muito mesmo); aliás, esta é a parte mais frustrante de todas. No meu
texto O dia
que saí do armário, eu também dissertei sobre o quão
importante é reconhecer o que está acontecendo e revelar isso a todos
familiares, amigos e colegas, mas, além disso, é também muito importante saber
que, apesar de ser o passo mais difícil, esse é apenas o início de todo o
processo.
Após
uma metamorfose tão grandiosa e significativa quanto a perda de qualidade de um
sentido tão essencial, tudo precisa ser reconfigurado nas nossas vidas, e é aí
que muita coisa começa a não mais fazer sentido.
Voltando
ao exemplo do filme, Ruben Stone era um músico, vivia para este propósito e
tocar bateria era tudo que ele sabia fazer bem na vida. Porém, repentinamente,
a sua maior (e única) ocupação deixa totalmente de fazer sentido, e ele se vê,
então, perdido e, ao mesmo tempo, aprisionado no seu próprio destino.
Trazendo
novamente para a minha própria vida, a cada crise que passo há uma nova lista
de coisas que simplesmente deixam de fazer sentido, isto é, eu preciso aprender
como fazer certas atividades de um modo totalmente diferente, ou simplesmente,
não fazer mais. E não há como escapar disso, pois abrange minha vida pessoal,
social e profissional.
Enfim,
qualquer mudança que acontece conosco pode ser muito traumática e custar muito
esforço, dedicação, perseverança e, por que não dizer, fé para traçarmos os
nossos novos caminhos; e, com certeza, contar com a ajuda de familiares, amigos
e de profissionais é de extrema importância. No entanto, é essencial relembrar
que não existe nenhuma cartilha a ser seguida e nem um passo a passo
pré-estabelecido para nenhuma das muitas situações que eu venho contando por
aqui.
Por
tudo isso, o único conselho que posso (e quero) compartilhar é: tenha
paciência.
Weber Amaral
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Parabéns Binho! Cada texto mais bonito q o outro! ❤️
ResponderExcluirValeu Giu por ler e pelo apoio.. um grande abraço
ExcluirMuito bom paralelo entre as duas obras. E o texto é tão bom quanto as referências citadas!
ResponderExcluirOpa.. eu lembro que um outro texto, vc falou que eu melhor que o José de Alencar. Agora eu estou do mesmo nível do Kafka... hahhaha... acho q vc tá querendo é me agradar mesmo.. hehe.. abraços.
ExcluirHahaha. Quanta humildade!
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